“Creio que as verdadeiras ideias literárias são aquelas que nos atormentam” – Entrevista a Albert Dalela em torno do “Gole de Lâminas”
Albert Dalela, nascido em Maputo, em fevereiro de 1996, é um jovem escritor cuja jornada literária começou cedo, aos treze anos, quando sua paixão pela escrita se manifestou inicialmente como composição de rimas musicais. Desde então, a sua trajectória o levou a formar-se em jornalismo e licenciar-se em linguística aplicada pela Universidade Eduardo Mondlane. Ademais, Dalela foi repórter no Zitimar News e já colaborou com artigos em jornais e agências de informação. Já publicou contos e recessões críticas em blogues. Actualmente, é colaborador do Observatório do Cidadão para saúde.
Nesta entrevista, Dalela fala do processo criativo de “Gole de Lâminas”, seu romance de estreia, que encantou vários leitores e já esgotou a sua primeira edição. Além disso, Dalela revela os desafios que enfrentou ao longo da composição deste livro; fala de algumas das suas influências literárias que moldaram seu estilo de escrita; explica como a música, especialmente o Hip Hop e músicos como Stevie Wonder e Miles Davis, desempenharam um papel fundamental em sua criatividade e processo de escrita.
Fernando Absalão Chaúque (FAC): “Gole de Lâminas” é o seu livro de estreia e é um romance de fôlego com mais de 400 páginas. A primeira questão que me ocorreu depois de lê-lo é: como foi o processo da sua construção (quando começou a escrevê-lo, quanto tempo levou a trabalhar e quais foram os maiores desafios que enfrentou na concepção do mesmo)?
Albert Dalela (AD): Encontrava-me na faculdade, ainda no meu segundo ano de estudos linguísticos. Já vinha esboçando ideias para o romance, mas foi no segundo ano, em 2017, que realmente me pus a trabalhar no Gole de Lâminas. Exceptuando as obrigações académicas, tinha todo o tempo do mundo para escrever, sem distracções quaisquer, até porque morava sozinho, a minha mãe e irmãs acabavam de se mudar para uma outra zona. Lia à farta os romances que me surgiam e escrevia o que me atormentava a vida. Creio que as verdadeiras ideias literárias são aquelas que nos atormentam, são grandes fantasmas que se manifestam através de palavras confusas e inquietantes. Quando dei por mim, num processo de escrita teimosa e contínua, lá estava o primeiro esboço de Gole de Lâminas. Em seguida, levei a cabo um trabalho de revisão do tal esboço e, passados dois anos, tinha em mãos o romance. Respondendo exactamente à questão, elaborei Gole de Lâminas num período de dois anos e meio, e podes crer que os desafios foram diversos, desde crises de ansiedade a bloqueios criativos. Debati-me também com desafios de ordem emocional, questionando-me o seguinte: será que vale a pena escrever isto? Será que encontrarei um leitor ideal? Depois de ter isto publicado, não me vão atirar com ovos podres pelos ditos peritos da matéria? Estas questões sempre estiveram doutro lado do meu processo criativo e acredito que todo artífice enfrenta algo do género, com ou sem exactamente estas nuances.
FAC: Há um alinhamento harmonioso neste romance, quanto ao tom, ao ritmo do texto e às peripécias nele abordadas. Gostava de saber se houve um detalhado planeamento do livro antes de ele ser escrito ou és um escritor que trabalha apenas com o “conceito geral do livro” e o resto vai se desvendando ao longo do processo?
AD: Deixa-me contar-te o seguinte: o primeiro romance, que escrevi aos dezasseis ou dezassete anos, ainda no ensino médio, tinha tudo que ver com Kafka, a Metamorfose de Kafka. A minha obsessão por Kafka levava-me a ambicionar uma escrita daquele patamar, quis copiar tudo de Kafka, a construção frásica, a selecção lexical, o humor, o sarcasmo e o génio da grande metáfora. Tal romance, entretanto, terminou na lata de lixo porque senti-o como sendo uma autêntica cópia da caligrafia Kafkiana, não mostrei a amigo nenhum, nem sequer a minha própria alma. Depois deste episódio, jurei para mim mesmo que, se voltasse a escrever um romance, deveria fazê-lo tão bem a ponto de tocar a estética da Metamorfose, mas sem tentar ser Kafka. Devia apenas lapidar a minha própria sombra e expressar as coisas com a minha voz. Então, durante a composição do Gole de Lâminas, tinha em mente a estética Kafkiana, mas, ao longo de vários processos de escrita e arranjo, fui ganhando outras influências, não apenas literárias, mas também musicais, cinematográficas, assim como as da vida real. Assim sendo, com um conceito bastante vago da narrativa, tudo foi-se desvendando ao longo da criação, os personagens revelaram-me as suas vontades, o espaço e o tempo revelaram-me como queriam ser descritos e representados, e, por último, acções e transformações juntaram-se ao jogo até que no fim surgisse o nosso objecto em discussão.
FAC: Temos duas vozes que nos guiam neste livro (Álvaro Mercúrio e Jorge Durão); são vozes distintas, que carregam diversas amarguras internas mas que se complementam. Como foi o processo de criação destes dois personagens?
AD: Sempre deixei-me fascinar pelo Absurdo, no seu sentido filosófico. Por influência de Camus, Sartre, Nietzsche ou Perec, sempre busquei personagens e cenários imprevisíveis. Aliás, a Geração Beat, com os seus Jack Kerouac ou William Burroughs, ensinou-me a amar personagens que, debatendo-se com questões específicas da vida quotidiana, reflectem sempre sobre a existência e suas crises. Os personagens em alusão são infalíveis, imperfeitos, subversivos, críticos, provocadores, questionadores, complexos e marginais. A criação de Álvaro e Jorge enquadra-se nesta lógica, quis que fossem inesquecíveis e mais vigorantes tal como o título do livro. Os bons livros tornam-se inesquecíveis através de seus personagens, há personagens que chagam a ser famosos à semelhança dos seus autores, tomemos como exemplo Sherlock Holmes, Dom Quixote, Os Três Mosquiteiros, Conde de Monte Cristo, Capitão Ahab, Quincas Bordas, Capitu, Bel Ami, e por aí em diante. Construí, claro, os dois personagens com a “ilusão” de estar a inventar peças inesquecíveis dentro do nosso panorama literário.
FAC: Diz-se que o título é a primeira coisa que os leitores vêem, então é importante que ele seja atraente e represente bem a sua obra. Pode falar um pouco sobre o título “Gole de lâminas”; quando decidiu que seria este o título, no início, no meio, ou já no fim do livro? Este livro já teve outros títulos? Quais? E o que lhe motivou a escolher este como o título definitivo?
AD: Tendo em conta o Absurdismo mencionado acima, creio que já temos alguma ideia sobre o título. Bem, queria que o mesmo fosse ao encontro da cor da narrativa, tomando em conta partes específicas do quebra-cabeça. Colocando este circunlóquio de lado, entretanto, Gole de Lâminas constitui uma metáfora em representação de algum tipo de distúrbio, que se caracteriza pelo seu carácter ofensivo, complexo e repugnante. A intenção era mesmo originar incómodos aos leitores, deixá-los numa condição de temor e curiosidade, dentro da seguinte reflexão: qual é o sabor da lâmina? O que ela faria com uma garganta humana? Antes deste título, quis que o romance se denominasse Breve Ensaio Sobre Vómito. Mas este título acabou ficando na primeira parte do livro. Gole de Lâminas foi o predilecto por conseguir responder a questões peculiares do romance.
FAC: O Álvaro Mercúrio sonha em ser um romancista e mostra-se revoltado contra o mundo e principalmente contra os políticos que “não cumprem as suas promessas e os seus ditos deveres sociais”. Será este personagem alguma espécie de alter ego de Albert Dalela?
AD: É impossível olhar para os políticos com bons olhos. Nos dias que correm, por exemplo, temos uma guerra na Ucrânia, onde civis são impiedosamente massacrados. Esta guerra foi motivada por questões políticas, foram os políticos que deram ordens aos militares para que bombardeassem. Sem os políticos, há coisas que nunca poderiam ter acontecido. Em Moçambique, tivemos uma guerra que durou 16 anos, inocentes perderam a vida, casas foram destruídas, faltou comida, faltou água e por aí em diante… tudo isto deve-se aos políticos. África continua a ser a lixeira do mundo por conta de questões políticas, não conseguimos sair da linha da pobreza por conta da corrupção levada a cabo pelos políticos. Não tenho uma fórmula “perfeita” de governação, mas tenho certeza que a democracia ocidental não serve para os africanos… a anarquia não é, com certeza, um caminho ideal, mas os sistemas políticos ocidentais pioram a nossa condição. Enfim, Álvaro diz o seguinte: é praticamente impossível simpatizar com os políticos, enquanto houver fome, ignorância, mendicidade, perseguição aos artistas e jornalistas. Obviamente, mas não totalmente, há alguns pontos semelhantes entre o autor e o personagem. Sobre a pretensão de ser romancista, por outro lado, Álvaro assemelha-se completamente a mim, sempre quis ser romancista. Na minha adolescência já me imaginava a escrever romances. Como qualquer outro indivíduo moçambicano, andei em poesias e contos, mas o meu sonho sempre residiu no romance, ser romancista até que as pedras, como diria Lobo Antunes, se tornem mais leves que a água. Há essa semelhança entre mim e Álvaro, tal como há entre John Fante e Arturo Bandini ou entre Paul Auster e Ferguson, no 4321.
FAC: Ao longo do romance são invocados escritores como John Steinbeck, João Paulo Borges Coelho, Mia Couto e outros. Haverá alguma influência destes na sua escrita e especialmente na composição deste romance?
AD: Sem dúvidas ou hesitações, Steinbeck tem uma forte influência sobre mim, não é por acaso que releio continuamente Vinhas da Ira e A Leste do Paraíso, dois romances completos em termos de estética e conteúdo. Steinbeck impacta-me pela sua sinceridade, honestidade artística e humanismo penetrante… aliás, é impossível ler Homens e Ratos e continuar na escuridão, é por isso que Steinbeck me toca. João Paulo Borges Coelho também me tira do chão, é o moçambicano de que mais gosto de ler. Olho de Hertzog, Crónica da Rua 513.2 ou Água – Uma Novela Rural são preciosidades dentro da Literatura Moçambicana e Borges é que os escreveu. Mia Couto não tem grande influência sobre mim, embora respeite a sua grandiosidade na literatura moçambicana. Os escritores que me influenciam também me perseguem, estão de alguma forma presentes no meu processo criativo, chegam a expressar-se implicitamente. Creio que assim foi quando trabalhava no Gole.
FAC: Além de escritores, são citados e ou mencionados músicos como Miles Davis, George Benson, Kendrick Lamar, Stevie Wonder, Valete, Duas Caras etc. Ademais, várias vezes afirmou que entra para escrita primeiramente através da composição de rimas musicais. Gostava que explicasse como foi este processo?
AD: A música, obviamente, sempre esteve de mãos dadas com a literatura. Sempre andei atrelado ao movimento Hip Hop, e os meus primeiros contactos com a escrita deviam-se à intensão de rimar musicalmente. Um MC que ambiciona escrever coisas inteligentes deve ler livros, e eu os lia com tal intenção. Nesse processo, entretanto, mais do que ler para rimar, interessei-me por outras formas de usar a escrita, seja através do jornalismo ou através da literatura. Ou seja, a minha escrita despoletou-se na música e foi desaguar na literatura. O Hip Hop salvou-me, deu-me a escrita, a palavra, a língua, e a vontade de aprender. A literatura ainda não me ajuda a pôr comida na mesa, mas ganho a vida através da escrita e isso deve-se ao Hip Hop, que me deu as bases para sonhar. Faço-me sempre acompanhar pela música, o RAP e o jazz vivem dentro de mim, não sou o mesmo sem isto. A música, dentro da minha cabeça, copula com a literatura. Stevie Wonder é o pai da minha alma, choro e alegro-me com ele, cito-o em todos os meus livros, escuto-o todos os dias e às vezes sonho com ele a cantarmos para os deuses. Benson é especial por me ter ensinado a olhar para a arte como “the greatest love of all.” Costumo dizer que Miles Davis, com Kind of Blue, conseguiu criar uma igreja marginal para todo o tipo de ser, uma igreja que recebe a todos sem querer nada em troca. Kendrick Lamar, que se apresenta como uma lenda da sua geração, surge como resposta a um contexto específico da narrativa à semelhança de Duas Caras que, embora não seja o mesmo nos dias que correm, deu-nos rimas valiosas e eternas. Estes nomes, para bem dizer, são ingredientes cruciais na minha dieta musical, mas poderia ter citado muitos outros.
FAC: Neste livro, os Centros Culturais da Cidade de Maputo desempenham um papel significativo na vida de Álvaro Mercúrio; neles, ele leu muitos livros e aprimorou a sua habilidade de escrita. Como vês a importância desses espaços culturais na formação de leitores e até que ponto, estes locais são/foram importantes para si?
AD: Eu sou produto dos centros culturais. Porque nunca tive dinheiro suficiente para comprar os livros que quero ler, recorro aos centros culturais, bastante ricos e abertos para os necessitados. O extinto Centro Cultural Norte-Americano Martin Luther King deu-me a conhecer os grandes mestres do Romance Americano, tive a oportunidade de ler alguns na língua original. O Centro Cultural Franco-Moçambicano deixou-me apreciar o charme da grande literatura francesa e sou bastante grato. O Camões continua a apresentar-me nomes incontornáveis da literatura universal. Não há gratidão suficiente, sou redundantemente grato por estas casas estarem a oferecer, a custo zero, luzes para a mente humana. Lanço o convite a quem queira descobrir mundos inesgotáveis em forma de literatura. Sem os centros culturais, provavelmente não estivesse aqui a falar de literatura ou a citar estes nomes. Às brincadeiras, costumo dizer aos amigos que sou enteado dos americanos e franceses, por estes me terem dado a coragem e a ousadia de me embebedar com a literatura.
FAC: Depois de Gole da Lâminas o que segue? Já tem um projecto finalizado ou em andamento? E quando sai?
AD: O trabalho não pára, tenho teimosamente trabalhado todos os dias. Sim, tenho três projectos finalizados. Um deles já se encontra em apreciação editorial e, dependendo do curso das negociações, poderá sair muito em breve, e espero que os leitores estejam comigo tal como o fizeram durante a venda de Gole de Lâminas que, neste momento, está esgotado.
Título: Gole de Lâminas
Editora: Ethale Publishing
Págs. 422
Ano: 2021