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O voo para Salvador

O voo para Salvador

Como um solavanco suave, o avião toca o chão e o meu corpo contrai-se por um instante. Estremeço. Sinto um alívio indescritível. O som das rodas tocando o asfalto revestido de preto. Ao descer senti uma ligeira brisa do Sol tropical a acariciar o meu rosto. O ar húmido e carregado de fragrâncias exóticas envolve os meus sentidos, fazendo-me perceber que estou em um lugar muito distante de casa. Naquele momento eu aprendia os antónimos da intimidade. Quando descemos no aeroporto de São Paulo, o relógio marcava sete horas da manhã. O nosso próximo embarque estava marcado para às dez horas. Foi-nos indicado a sala de embarque onde permaneceríamos algumas horas à espera do próximo voo.  Nesta sala estava eu, Kelv, Jorge, Fidélio, Elídio, Beto e outros colegas de viagem.

Cada momento daquela viagem marcava as nossas vidas. Era a nossa primeira vez. Mas aqui não vos venho contar sobre a brilhante viagem. O que sucedeu foi o seguinte. Passados trinta minutos de permanência à espera do embarque, Beto, aos poucos, foi-se aproximando de mim. Pé ante pé. Num estilo lento e desatento.

—  Amigo, tudo bom? — saudou-me assim que se acomodou no banco ao lado.

— Beto? — lancei um ligeiro sorriso.— Estou bem e você? — devolvi a saudação.

Olhei-o desconfiado. Beto exibia uma cara de quem quer pedir alguma coisa.  É magro, de corpo baixo, tinha o rosto todo embrulhado de pêlos que parecia gostar das suas volumosas barbas. Trajava, naquela manhã, umas calças leves de estilo balalaica. Embora a delicadeza no seu andar, Beto tinha um defeito, confundia os vocábulos, era fila e não bicha.

— Mas, amigo, que tal, não tem fome? Estamos a fazer uma contribuição de alguns moedas para comermos qualquer coisa antes de embarcar — disse  após um longo silêncio.

Minutos volvidos, ele consegue convencer-me a tirar as moedas. No mesmo instante, ele pergunta-me se eu gostaria de acompanhá-lo para comprar as tais coisas. Aceito o convite. Levanto-me. Sigo-o por trás. Mais ao fundo vem o Fidélio e o Jorge a galope.

— Vocês, afinal, vão comprar onde essas coisas? — perguntou Jorge, sem fôlego.

— Alí mais adiante — respondeu Beto.

— Éh! Depois aqui há muitos whites — bocejou  Fidélio aos risos.

— E? — perguntei.

— É medo que ele tem de conversar com eles — defende Beto, aos cochichos.

— Nada disso, pá — justificou Fidélio.

— É isso mesmo — interveio Jorge — Aliás, não é ali onde vendem essa cena? — acrescentou.

— É ali mesmo, vamos parar naquela bicha— dispara Beto.

Avançamos  com ar de quem ali vive por muito tempo. O ar confortável que aquele lugar proporcionava deixava-nos alegres. Todos os assentos alinhados em perfeita simetria. O chão de mármore pálido reflecte a luz brilhante do teto alto, era, sim, o aeroporto de  São Paulo. Aquele que cobiçosamente comtemplávamos nas novelas. . As paredes revestidas de peinés de vidro revelavam o vislumbre do mundo lá fora onde os aviões cintilantes aguardam a sua próxima viagem. À medida que o relógio avança, a sala de embarque transforma-se em ponto de partida para histórias infinitas. Enquanto trocávamos conversas soltas na fila de espera, à nossa esquerda, aproximava-se uma senhora branca, que trazia um vestido vermelho de seda. No rosto trazia óculos escuros. Tinha cabelos lisos e o seu corpo era docente jovial. Olhamo-la em silêncio.

— Olá, meninos. Quem é a última pessoa? — quis saber ela, com voz de piano.

— Sou eu a última pessoa da bicha — responde Beto, apressado.

—  Que tu ‘djisse’ ?

— Eu sou a última pessoa da bicha — repetiu inocente.

Que tristeza, Beto novamente confundia as palavras. Naqueles instantes fomos vítimas de olhares. Parecia que todo universo estava contra nós. Naquele instante, fomos  vítimas de olhares estranhos, como se tivéssemos cometido um pecado. À direito havia um jovem que, por acaso, ouvira a pergunta, e, em prontidão,  disparou.

— Aí, pó. É  fila e não bicha, vei. — Corrigiu o jovem, com típico sotaque brasileiro.

Entreolhámo-nos, tímidos. A senhora que há pouco perguntava permaneceu calada. Parece ter compreendido que a gíria não nos era familiar. Minutos depois, à nossa saída, o jovem que a pouco se pronunciou aproximou-se e esclareceu.

— Ai, manos. Vocês, provavelmente, vêm de longe e terão que tomar cuidado com algumas expressões aqui, tranquilo?

Com gesto lento, levantámos a mão em jeito de agradecimento. Enquanto caminhávamos, olhámos para Beto, cabisbaixo. Bicha é o nome que se dá, no Brasil, aos homossexuais. Beto gritou, finalmente.

— Valhanha mpela (estão loucos mesmo)…

Gaspar A. T. Pagarache, 2023

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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