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O que o conceito de ‘Amor Fati’ de Nietzsche tem para ensinar-nos

Um dos aspectos mais estranhos e intrigantes das ideias de Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) é o seu entusiasmo repetido por um conceito a que chamou amor fati (traduzido do latim como “amor ao destino”, ou, como poderíamos dizer, uma aceitação resoluta e entusiástica de tudo o que aconteceu na nossa vida). A pessoa com amor fati não procura apagar nada do seu passado, mas aceita tudo o que aconteceu, o bem e o mal, o errado e o sábio, com força e uma gratidão abrangente que beira uma espécie de afecto entusiástico.

Esta recusa em lamentar e retocar o passado é anunciada como uma virtude em muitos pontos da obra de Nietzsche. No seu livro A Gaia Ciência (1882), escrito durante um período de grandes dificuldades pessoais para o filósofo, Nietzsche escreve:

Quero aprender cada vez mais a ver como belo o que é necessário nas coisas; então serei um daqueles que tornam as coisas belas. Amor fati: que seja esse o meu amor a partir de agora! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar; nem sequer quero acusar aqueles que acusam. Desviar o olhar será a minha única negação. E tudo em tudo e no todo: um dia quero ser apenas um Sim.

E, alguns anos mais tarde, em Ecce Homo (1888), Nietzsche escreve:

A minha fórmula para a grandeza de um ser humano é o amor fati: que não se queira que nada seja diferente, nem para a frente, nem para trás, nem em toda a eternidade. Não apenas suportar o que é necessário, muito menos escondê-lo… mas amá-lo.

Na maioria das áreas da vida, na maior parte do tempo, fazemos exactamente o contrário. Lutamos violentamente contra os acontecimentos negativos – e não aceitamos o seu papel nas nossas vidas. Não amamos e não abraçamos o fluxo dos acontecimentos. Passamos uma enorme quantidade de tempo a fazer o balanço dos nossos erros, a lamentar e a lamentar as infelizes reviravoltas do destino – e a desejar que as coisas pudessem ter corrido de forma diferente. Somos, por norma, grandes opositores de tudo o que possa parecer resignação ou fatalismo. Queremos alterar e melhorar as coisas – nós próprios, a política, a economia, o curso da história – e parte disso significa recusar a passividade perante os erros, as injustiças e a fealdade do nosso próprio passado e do passado colectivo.

O próprio Nietzsche, nalguns momentos, conhece bem este desafio. A sua obra dá muita ênfase à acção, à iniciativa e à auto-afirmação. O seu conceito de Wille zur Macht, ou Vontade de Poder, encarna exactamente esta atitude de vitalidade e de conquista dos obstáculos.

No entanto, um dos aspectos mais belos do pensamento de Nietzsche é o facto de ele estar ciente de que, para levar uma boa vida, precisamos de ter em mente muitas ideias opostas e de as reunir sempre que se tornem relevantes. Não precisamos – aos olhos de Nietzsche – de ser coerentes, precisamos de ter à mão as ideias que podem curar as nossas feridas. Nietzsche não está, portanto, a pedir-nos que escolhamos entre um fatalismo glorioso, por um lado, e uma vontade vigorosa, por outro. Permite-nos recorrer a um ou outro movimento intelectual, consoante a ocasião. Ele deseja que a nossa caixa de ferramentas mental tenha mais do que um conjunto de ideias: que tenha, por assim dizer, um martelo e uma serra.

Certas ocasiões precisam particularmente da sabedoria de uma filosofia orientada pela Vontade; outras exigem que saibamos aceitar, abraçar e deixar de lutar contra o inevitável.

Na própria vida de Nietzsche, houve muita coisa que ele tentou mudar e superar. Fugiu da sua família restritiva na Alemanha e escapou para os Alpes suíços; tentou afastar-se da estreiteza do mundo académico e tornou-se escritor independente; tentou encontrar uma mulher que pudesse ser simultaneamente uma amante e uma alma gémea intelectual.

Mas muita coisa neste projecto de autocriação e de auto-superação tinha corrido terrivelmente mal. Não conseguia tirar os pais, sobretudo a mãe e a irmã, da cabeça. O que, aos seus olhos, eram as suas atitudes e preconceitos enlouquecedores (o anti-semitismo em particular) parecia ter-se espalhado por toda a Europa burguesa. Os seus livros vendiam-se mal e ele viu-se obrigado a pedir esmola aos amigos e à família para continuar a viver. Entretanto, as suas tentativas hesitantes e desajeitadas de seduzir as mulheres eram ridicularizadas e rejeitadas. Devem ter sido muitos os lamentos e arrependimentos que lhe passaram pela cabeça nas suas caminhadas pelo Alto Engadine e nas suas noites no seu modesto chalé de madeira em Sils Maria: se ao menos tivesse seguido uma carreira académica; se ao menos tivesse sido mais confiante com certas mulheres; se ao menos tivesse escrito num estilo mais popular; se ao menos tivesse nascido em França…

Foi devido ao facto de tais pensamentos – e cada um de nós tem a sua própria variedade de pensamentos – poderem ser tão destrutivos e devastadores para a alma, que a ideia de “amor fati” se tornou irresistível para Nietzsche. Amor fati era a ideia de que ele precisava para recuperar a sanidade após horas de auto-recriminação e crítica. É a ideia de que nós próprios podemos precisar às 4 da manhã para acalmar uma mente que começou a roer-se a si própria pouco depois da meia-noite. É uma ideia com a qual um espírito perturbado pode saudar os primeiros sinais do amanhecer.

No auge do amor fati, reconhecemos que as coisas não poderiam ter sido de outra forma, porque tudo o que somos e fizemos está intimamente ligado a uma teia de consequências que começou com o nosso nascimento – e que não podemos alterar à nossa vontade. Vemos que o que deu certo e o que deu terrivelmente errado são uma coisa só, e comprometemo-nos a aceitar ambos, a deixar de esperar destrutivamente que as coisas pudessem ter sido de outra forma. Desde o início que nos dirigíamos para um grau de catástrofe. Sabemos porque é que somos os seres desesperadamente imperfeitos que somos; e porque é que tivemos de estragar as coisas tão mal como o fizemos. Acabamos por dizer, com lágrimas em que se misturam à dor e uma espécie de êxtase, um grande sim à toda a vida, no seu horror absoluto e nos seus momentos ocasionais de beleza espantosa.

Numa carta a um amigo, escrita no verão de 1882, Nietzsche tentou resumir o novo espírito de aceitação em que aprendera a apoiar-se para o proteger da sua agonia: “Estou num estado de ‘entrega a Deus’ fatalista ⎯ chamo-lhe amor fati, de tal modo que estaria disposto a precipitar-me nas mandíbulas de um leão”.

E é aí que, depois de demasiado arrependimento, devemos aprender por vezes a juntarmo-nos a ele.

Autor do texto: The School of Life. Disponível em: https://www.theschooloflife.com/article/nietzsche-regret-and-amor-fati/?fbclid=IwAR2iKD1V3S9D8758anZAKDzP3-tk_fD-oGmzycbcKWQ3_K_QvYlrO4bkITQ/?/. Tradução de Daúde Amade

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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