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Bilinguismo, multilinguismo, diglossia, variações linguísticas no português de Moçambique

 

É evidente que a principal função da língua é a comunicação. É por via dela que nos comunicamos. A língua faz parte da nossa identidade e da nossa cultura e está presente nas experiências do nosso quotidiano. Com a invenção da escrita, a humanidade deixou o período da pré-história e passou a fazer História. Foi um divisor dos tempos, pois com o uso da escrita pôde perpetuar-se o conhecimento já adquirido e multiplicá-lo para que outras pessoas aprendessem.

A situação de plurilinguismo no país remete-nos para a relação língua e sociedade, questão objecto de estudos da Sociolinguística, ciência que se preocupa em explicar a variabilidade linguística e sua relação com diversos factores linguísticos e sociais, buscando também relacionar variação e mudança linguística. Ora, pretende-se aqui compreender multilinguismo e as variações linguísticas. Iremos também definir e caracterizar bilinguismo e diglossia.

A elaboração deste trabalho foi baseada na pesquisa bibliográfica. Tomamos como principais referências as obras ‘’Plurilinguismo, Multilinguismo e Bilinguismo: Reflexões sobre a Realidade Linguística Moçambicana’’ de Menezes (2013); ‘’Sociolinguística’’ de McCleary (2009) e ‘’Bilinguismo: Diferentes defi­nições, diversas implicações’’ de Flory e Souza (2009).

 

  1. Variações Linguísticas

É um facto, as línguas do mundo variam muito entre si. Dentro da mesma língua, pode haver variedades regionais, chamadas dialectos.

Segundo Menezes (2013) as línguas moçambicanas que se encontram em contacto permanente com a língua portuguesa, língua de unidade nacional e língua de comunicação interétnica, falada pela maioria da população como segunda língua e/ou língua estrangeira, criam situações de variação, principalmente a variação do sotaque, que marcam o estado de ‘nativização’ do português em Moçambique em todas as regiões do país. Essa variação aparece em todas as línguas maternas de origem bantu que surge em conexão com uma transferência de propriedades dessas línguas, independentemente se o falante tem o português como L1, L2 e/ou LE. Neste âmbito, temos os seguintes tipos de variação.

1.1 Variações próprias à pessoa

Quando uma pessoa fala, você pode saber muita coisa sobre ela só por meio da sua maneira de falar! Muitas vezes, mesmo sem olhar para a pessoa (no caso de língua oral, claro!), você pode adivinhar de onde ela vem, o sexo, a idade (mais ou menos), a etnia e a classe social, só pela linguagem que usa: as palavras, o sotaque, as expressões, a entoação, as escolhas gramaticais. Saber de onde uma pessoa vem não é difícil se a pessoa fala um dialecto, ou se fala com um sotaque regional (McCleary:2009).

1.2 Variações próprias à situação

Segundo McCleary (2009) nem toda variação indica quem está falando. Muita variação na língua indica o que está acontecendo, onde está acontecendo, e qual é a importância social do

que está acontecendo. Ou seja: as mesmas pessoas podem falar (e precisam falar) diferentemente em horas e ocasiões diferentes. As pessoas não falam sempre da mesma forma. Elas modificam a maneira de falar de acordo com a situação.

1.3 Jargões

Um jargão é uma linguagem específica para uma determinada actividade. Em geral, um jargão é marcado por muitas palavras “diferentes”, palavras que só são entendidas pelo grupo de pessoas que são especialistas naquela actividade. Os médicos falam um jargão médico que é difícil para o paciente entender, porque tem muitas palavras técnicas que os pacientes não conhecem; os advogados, procuradores e juízes usam um jargão jurídico que também confunde os leigos, os cidadãos comuns, pelo número de palavras técnicas (que muitas vezes expressam conceitos simples); os policiais também, os mecânicos também, e os técnicos de telemática também. Todas as profissões têm seu vocabulário próprio.

Algumas variações linguísticas notáveis em Moçambique

Segundo Menezes (2013) são abaixo apresentamos algumas as variações linguísticas notáveis em no português moçambicano:

  1. a) Ensurdecimento das oclusivas sonoras, típicas dos falantes nativos do emakhuwa. O sistema fonológico do emakhuwa só contém oclusivas surdas e, por isso, não contempla uma distinção fonológica entre oclusivas sonoras e surdas, como o português faz.

Ex. (PE: [bɔla] ‘bola’; PM: [bɔla]; Emakhuwa: [pɔla]

(PE: [buʀu] ‘burro’ PM) [buru]; Emakhuwa: puru]

  1. b) traços lexicais: surgem através de empréstimos lexicais das línguas maternas no português falado em algumas zonas de Moçambique:

Ex. Dumba-nengue, palavra de origem ronga, língua moçambicana, que literalmente significa ‘confie nas suas pernas’, uma expressão usada em referência a um tipo de mercado informal, na zona sul de Moçambique. A palavra é uma combinação de «ku-dumba», ‘confiar’ e «nengue», ‘pé/perna’. Indica o fato de que os mercados informais são ilegais e, por isso, os vendedores têm que fugir constantemente da polícia, confiando nas suas pernas.

  1. Multilinguismo e Bilinguismo

Bilinguismo, multilinguismo, diglossia, variações linguísticas no português de Moçambique

Multilinguismo é o uso ou promoção de mais de um idioma, seja por uma pessoa ou por uma comunidade de pessoas. Ou seja, o multilinguismo é evidente num contexto onde várias línguas coexistem. Por outro lado, falar de multilinguismo significa igualmente falar de multiculturalismo, pois a língua veicula a cultura e com ela o modo de estar, de pensar, de agir, etc (McCleary:2009).

Júnior (1974) citado por Menezes (2013) bilinguismo é a capacidade de um indivíduo de usar duas línguas distintas, optando por uma ou por outra, conforme a situação social em que no momento se ache. Esta definição não se diferencia muito da de Hamers e Blanc (1989:6), segundo a qual o bilinguismo é o controlo de duas línguas equivalente ao controle de que o falante nativo dessas línguas é capaz. Para estes autores, o sujeito bilingue é aquele que funciona em duas línguas em todos os domínios, sem apresentar interferência de uma língua na outra.

 

No entanto, esta definição de bilinguismo é contestada por Cavalcanti (2007:72), que problematiza a questão de definir “quem é o falante nativo que é tomado como modelo e qual é o seu controle linguístico”. Ela afirma que, no conjunto dos falantes nativos de uma dada língua, sempre se encontra uma variedade imensa de comportamentos linguísticos, a depender da procedência, da faixa etária, do género, da ocupação, do nível de escolarização.

O funcionamento discursivo do sujeito bilingue prevê a utilização de mudança de código (code switching) e empréstimos linguísticos (borrowings) em sua gramática. Segundo Gumperz (1982:75) citado por Menezes (2013) o code switching é um fenómeno linguístico natural que consiste no uso alternado de dois ou mais códigos nas interacções conversacionais entre indivíduos bilingues.

A classificação de um falan­te como bilingue pode variar muito a depender dos critérios utilizados para tal. Além disso, podemos pensar em tipos de bilinguismo, ou seja, nem todos os casos de bilinguismo são idênticos. No contexto da educação escolar bilingue, é importante que os educadores saibam exactamente com qual tipo de situação de bilinguismo está lidando a fim de propor práticas pedagógicas adequadas e eficientes, que façam sentido em cada contexto.

Flory e Souza (2009) apresentam alguns critérios adoptados para a classificação de tipo de bilinguismo.

2.1 Proficiência nas línguas em questão

Esse critério diz respeito à capacidade do indivíduo no uso das duas línguas em questão. A partir desse critério, é possível chegar a dois tipos de falantes bilingues, os balanceados e os dominantes:

Falante bilingue balanceado: tem competência similar no uso das duas línguas;

Falante bilingue dominante: tem melhor competência em uma das duas línguas.

Idade de aquisição da segunda língua

O termo aquisição de linguagem pela criança ou pelo adulto pode se referir amplamente à aquisição da língua materna, de uma segunda língua e da língua escrita. No caso aqui em questão, trata mais profundamente da aquisição de uma segunda língua. A depender da idade em que adquirem a segunda língua, os falantes bilingues podem ser classificados em precoces (subdivididos em tipos de bilinguismo simultâneo ou sequencial) e tardios:

Falante bilingue precoce: adquire a segunda língua durante a infância, sendo que a situa­ção de aquisição pode ser de:

Bilinguismo Simultâneo: a aquisição das duas línguas se dá ao mesmo tempo;

Bilinguismo sequencial: a aquisição da segunda língua se inicia após a aquisição da pri­meira estar completa.

Falante bilingue tardio: adquire a segunda língua durante a adolescência ou idade adulta.

Essa questão do período em que a segunda língua é adquirida traz um ponto bastante contro­verso nos estudos linguísticos e psicolinguísticos: a existência de um período ideal, chamado período crítico, para o desenvolvimento da linguagem. Alguns autores consideram que existe um período ideal para o desenvolvimento da linguagem pela criança e que, depois desse pe­ríodo crítico, a aquisição se torna muito mais complicada, até deixa de ser um processo genuí­no de aquisição e passa a se configurar como um processo de aprendizagem de habilidades.

  • Organização dos códigos linguísticos

O terceiro critério se refere ao modo como os falantes bilingues organizam seus códigos lin­guísticos. Isso, por sua vez, se relaciona à organização cognitiva. São previstos, a partir deste critério, três tipos de bilinguismo:

Bilinguismo composto: situação em que dois conjuntos de códigos linguísticos estão as­sociados a uma unidade de significado.

Bilinguismo coordenado: cada código linguístico está organizado separadamente em dois conjuntos de unidades de significado;

Bilinguismo subordinado: os códigos linguísticos da segunda língua estão organizados e são interpretados com base na primeira língua.

2.4 Status da língua em questão

Este critério organiza o bilinguismo de acordo com o status social e político das línguas dentro da sociedade em que são faladas. São propostos dois tipos: o Bilinguismo de Elite e o Bilin­guismo Popular.

Bilinguismo de Elite: o indivíduo fala a língua dominante dentro daquela sociedade e também fala uma língua que lhe confere prestígio neste mesmo grupo;

Bilinguismo Po pular: esse tipo de bilinguismo ocorre em grupos linguísticos minoritários. A língua falada não tem status elevado na sociedade em que seus falantes estão inseridos.

2.5 Manutenção da Língua Materna

Este critério diz respeito à manutenção (ou não) da língua materna no processo de aquisição de segunda língua. Com relação a esse critério, o bilinguismo pode ser de dois tipos: bilinguis­mo aditivo e bilinguismo subtractivo.

Bilinguismo Aditivo: o indivíduo adquire a segunda língua sem prejuízo da primeira. Nesses casos, em geral, as duas línguas são valorizadas na sociedade em que está inserido;

Bilinguismo Subtractivo: o indivíduo adquire a segunda língua às custas da perda da lín­gua materna. Nesses casos, em geral, a língua materna não é valorizada na sociedade em que o falante está inserido.

2.6 Identidade cultural do indivíduo bilingue

O sexto e último critério de bilinguismo diz respeito ao tipo de identificação do indivíduo com os grupos culturais que falam as suas línguas e se este indivíduo quer ou não ser reconhecido como membro desses grupos. A partir daí, são derivados quatro tipos de bilinguismo:

Bilinguismo bicultural: o falante se identifica positivamente com os dois grupos de falan­tes e é reconhecido como membro de ambos;

Bilinguismo monocultural: o falante tem competência bilingue, mas somente se identifi­ca culturalmente com o grupo de sua língua materna;

Bilinguismo aculturado: o falante renuncia ou é obrigado a renunciar da identidade cultural do grupo de sua língua materna e adopta a identidade cultural do grupo falante da segunda língua;

Bilinguismo deculturado: o falante renuncia da identidade cultural própria, mas não passa a adoptar a identidade cultural do grupo falante da segunda língua.

  1. Diglossia

No Bilinguismo a escolha pelo uso de uma das duas línguas pelo falante está sujeita a diversos factores, internos e externos, muitos deles definidos pela situação comunicativa. No entanto, em muitas comunidades essa escolha pode passar do nível individual para o nível institucionalizado, dada a abrangência da situação de bilinguismo. Nesses casos, cada língua ou variedade linguística serve a uma função especial e é usada para propósitos particulares. Afirma-se que essas comunidades passam a viver em situação de diglossia.

Segundo Flory e Souza (2009) diglossia é o termo técnico para uma situação em que, na mesma sociedade, existem duas variedades linguísticas bem diferentes, uma para usos mais formais e a outra para usos mais informais. A primeira variedade mais formal é chamada “H”, ou “variedade alta”, e a mais informal “L”, ou variedade baixa. A variedade alta é sempre uma variedade literária, tipicamente clássica, e costuma ser aprendida nas escolas e não em casa. A variedade baixa, em geral, não tem escrita, nem reconhecimento oficial. É a língua aprendida e falada em casa, no mercado e entre amigos.

Ou seja, diglossia é o termo usado para referir-se a um tipo de especialização funcional entre línguas, em que a língua utilizada em casa e em outras situações de nível pessoal de interacção entre os membros da comunidade é diferente daquela que é usada em outras funções oficiais, como, por exemplo, a linguagem oficial do governo, da mídia e da escola.

 

Conclusão

As variações linguísticas não podem ser vistas como algo negativo no campo linguístico e social. Pois, trazem características próprias que enriquecem a pluralidade cultural de um país. É através delas que podemos nos expressar de diversas formas, aplicando-as em diversos contextos sociais. Nós como profissionais do ensino não podemos desconsiderar a existência desse fenómeno, pois, diariamente, nos depararemos com ele em sala de aula. É importante estarmos cientes que o processo de intervenção faz parte de nossa responsabilidade, mas não podemos agir de forma inconsequente, tratando as variações como apenas um desvio da norma padrão, mas, pelo contrário, mostrando aos nossos estudantes que eles podem falar de diversas maneiras, de acordo com a ocasião, estando conscientes que a norma padrão é exigida nos contextos formais, e que se faz necessária sua utilização principalmente nos usos da escrita.

Ao docente compete o papel de investir na sua formação, estudando, investigando, questionando, para buscar resultados que fundamentem seus argumentos em sala de aula, pois a partir do exercício da reflexão e da criatividade, ele poderá auxiliar na transformação e na formação de estudantes críticos e conscientes do respeito e da importância das variações linguísticas, do multilinguismo e do bilinguismo.

 

Bibliografia

FLORY, Elizabete Villibor; SOUZA, Maria Thereza Costa Coelho. Bilinguismo: Diferentes defi­nições, diversas implicações. Revista Intercâmbio, volume XIX: 23-40, São Paulo, 2009.

MCCLEARY, Leland. Sociolinguística. USP – Florianópolis, 2009.

Menezes, L.J. J. M. Plurilinguismo, Multilinguismo e Bilinguismo: Reflexões sobre a Realidade Linguística Moçambicana. Revista Percursos linguísticos, 2013.

SANTOS, Boaventura de Sousa (2020). A Cruel Pedagogia do Vírus. Edições Almedina, Coimbra.

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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