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Crónica de um país em chamas

Como acordou o país? Estás a perguntar? Não consegues ver? O país está em chamas. Há fogo no país, nas veias do povo que grita: este país é nosso, este país é nosso, este país é nosso! Não consegues ouvir? Ouvir o quê? O povo a gritar: povo no poder, povo no poder, povo no poder! Não consegues? O povo expele o fogo que há anos lhe corre nas veias. Os dísticos no ar, a gritar: a luta continua! A luta continua! O povo está nas ruas, em todo o país e clama em todas as línguas. O jornalista empunha o micro e, como se não conhecesse os motivos da manifestação, pergunta: estão nas ruas por quê? O povo responde: estamos a lutar pela bandeira, pelo país, e há mais gente a vir para se juntar a nós. E as vozes continuam: este país é nosso, este país é nosso, queremos paz, queremos uma democracia verdadeira em Moçambique. O povo está nas ruas. Não vês? E grita: mataram o nosso advogado, mas não mataram a causa, a luta continua, a luta continua, a luta continua. O homem olha para o micro e para a câmara, e diz: se quiserem podem matar a todos nós, mas não vamos recuar. Queremos paz e justiça. Estamos cansados de sermos escravizados no nosso próprio país. E as vozes em coro: povo no poder! Povo no poder! Povo no poder! A ideia é fazer uma marcha pacífica, percebeu senhor jornalista, marcha pacífica. E são tantas as vozes. São Vozes de todas as cores. Vozes de todo o país. O povo está nas ruas e clama: exigimos justiça neste país, todos temos o direito a liberdade de expressão, por isso não iremos recuar, se morrermos em batalha, digam as nossas mães que morremos fazendo o nosso melhor, a lutar por um país melhor. Além de dísticos, o povo tem também flores nas mãos, deposita-as sob o alcatrão. Algumas pessoas ajoelham-se, esticam a bandeira, verde, branco, preto, amarelo, vermelho, são as cinco cores da nossa bandeira, oram, choram, em homenagem aos homens assassinados, oram enquanto outros gritam: salve Moçambique, este país é nosso, salve Moçambique, este país é nosso; foram vinte e cinco balas, senhor jornalista, vinte e cinco, havia necessidade de tanta crueldade?, é por isso que estamos aqui, queremos repudiar este tipo de actos; já chega de tanta crueldade. E falando sobre a crueldade, Saramago disse: “O homem inventou a crueldade. O único animal cruel que existe no planeta somos nós; nós inventamos a crueldade.” E a multidão continua a gritar: já chega! Já chega! Já chega! E eis que surgem alguns BTRs. A polícia desce empunhando armas. O povo continua a clamar: povo no poder, a luta continua, este país é nosso, queremos justiça. Sabe, senhor jornalista, se calhar, usaram armas que pertencem ao estado para assassinar os nossos irmãos só porque exigiram a verdade! Chega! Chega! Este tipo de actos deve acabar. Sim, o país acordou azafamado. E onde estás, irmão? Estou em casa. E vejo tudo refastelado no meu sofá. Vejo tudo no ecrã que cabe na palma da minha mão. Irmão, não saíste para marchar? Nada, irmão. Então és um covarde. Não é isso, irmão. O que é? É que tenho medo da polícia, do gás lacrimogéneo, das balas. Deixa disso, bro, a manifestação é pacífica. Sei, irmão, mas a nossa polícia nunca quer saber disso, acha que todo mundo é vândalo, em qualquer ocasião sempre vai usar armas. Merdas, bro, é por causa de pessoas como tu que o país não anda nem muda, medroso, tchau, irmão, seu covarde, continua ai no teu sofá… mas perdes o direito de reclamar qualquer coisa no futuro. Na avenida, o número dos que pretendem marchar multiplica-se, as vozes também. Há mais BTRs a chegar. E há mais dísticos também: “Prefiro a liberdade perigosa à escravidão pacífica”. Há também as potentes vozes dos batuques: tam-tam-tam-tammm; as picantes vozes dos apitos: piiiii-piiiii-piiii; as robustas vozes dos vuvuzelas: pooommmm-pooommmmm-pooommmm. É assim que acordou o país. A jornalista empunha o micro, agora para a sua própria boca e começa a descrever o cenário: a polícia está fortemente armada neste local, todo o tipo de polícia está aqui, inclusive há um helicóptero policial a rondar este espaço; e a voz da hélice, no ar, vrum-vrum-vrum. E eu vejo tudo, sentado no meu sofá, a voz do meu amigo a gritar dentro da minha cabeça, covarde, és um covarde, bro, e vejo tudo a partir do ecrã pousado na minha mão. Eis uma das vantagens do avanço tecnológico: saber de tudo que acontece no mundo inteiro num click. A polícia está fortemente armada, agora perfila-se, forma um cordão intransponível, aproxima-se dos manifestantes que gritam: LADRÕES, FORA! CORRUPTOS, FORRA; ASSASSINOS, FORA!! E lembro-me que Samora disse: “O aparelho do estado tem de se libertar de todos indisciplinados, de todos preguiçosos, de todos os negligentes, de todos parasitas.” E a multidão, agora: LADRÕES, FORA! CORRUPTOS, FORRA; ASSASSINOS, FORA!! A polícia aproxima-se aos manifestantes e, zás: Pá! Pá! Pá! Bang! Bang! Bang! E o jornalista continua a descrever o cenário: a polícia disparou gás lacrimogéneo, gás lacrimogéneo, os manifestantes dispersam-se, é salve-se quem puder, caro telespectador. Cuidado, bro, cuidado, a polícia está a disparar, a polícia está a disparar, merdas, cuide-se irmão. E o jornalista continua: é um verdadeiro filme de terror, caro telespectador. Bang! Bang! Bang! A situação é mesmo de arrepiar, a polícia vai disparando gás lacrimogéneo contra os manifestantes. O helicóptero no ar, vrum-vrum-vrum, vrum-vrum-vrum. O gás a turvar a avenida. Esta merda de gás dói nos olhos, bro, cuidado, vamos andar, entra nesse beco ai; cof! cof! cof! Cof!, inalei a merda do gás. E um jovem surge no panorama, raivoso e fala para a câmera: ximãe, mina nahaya teka masocwa yakakwanga ya Colómbia, hilava kuvawela, vatagramara[1], não é justo o que eles estão a fazer, a gente estamos a manifestar de uma boa forma, assim do nada estão a atirar o que dá para eles atirarem, não ajuda, eu estou a ir levar minha tropa, vatagramara lava, namuntla today, hilavakuvawela, e o jovem desata a andar. O povo foi dispersado, já não se ouve o tam-tam-tam-tammm dos batuques nem as picantes vozes dos apitos e dos vuvuzelas. Reina o cheiro a gás lacrimogéneo, há dísticos abandonados no chão, e continuam a gritar, os dísticos: “Povo no Poder!” “Justiça!” “Democracia!” E uma voz, no fundo da avenida, no meio de brumas, grita: iremos até ao fim! E lembra-me mais uma frase de Samora Machel: “Loko ukhomile nkila wa ngonyama unga utsiki… loko uwutsika nkila wa ngonyama, yitakudlaya”.[2] Por isso, a voz volta a gritar: não iremos recuar, iremos até ao fim. E a voz do jornalista a soar perturbada, continua: a situação é caótica, caros telespectadores, a polícia disparou gás para os manifestantes e também para os jornalistas em plena conferência de imprensa, cof, cof cof, e o cameraman entrega-lhe a garrafa de água, o jornalista lava a cara e dá por terminada a reportagem. E eu, cá em casa, já estou inquieto, a andar em círculos dentro de casa, a entrar e a sair de compartimento em compartimento, tenso, porque apesar de não estar nas ruas é também a mim que o gás foi disparado, em segundos, a minha cabeça começa a doer, ligo várias vezes para o meu amigo, ele não atende, covarde, covarde, continua a voz do brother a gritar na minha cabeça. Lembro-me de uma frase que vi numas das redes sociais a viralizar: “Se há injustiça e nada fazes contra ela, és um cúmplice.” Do meu pequeno ecrã vejo o caos instalado em algumas avenidas da capital: barricadas, pneus acesos, vários obstáculos a interditar o trânsito, polícia com armas em punho, bang, bang, bang, pedras em pleno voo arremessadas pela força muscular. Mapeople, tragam mais pneus e combustível, hilava kuvawela today, a polícia a disparar. Carlos Chongo a gritar na minha cabeça: “Vateka svibamo vasviyendla svibalakatsa”. Ao pé da estrada, há uma camiseta com escritas vermelhas: “Iremos até ao fim.” A polícia: bang bang bang, toma bala, caro cidadão. E o cidadão: toma pedra, caro polícia. É um cenário de guerra. Irmãos em diferentes posições: toma bala, caro cidadão, toma pedra, caro polícia. O helicóptero a lançar gás. Eis o caos instalado. E as vozes continuam: estão a usar armas contra população desarmada; o helicóptero está a lançar gás indiscriminadamente, até nas residências, pelo menos 3 jornalistas foram feridos durante tumultos; há velhas e crianças que desmaiaram por causa do gás nas residências; um jovem foi ferido por uma bala estando dentro de casa; a polícia está a disparar balas verdadeiras contra a população, mas não iremos recuar, Malcolm X disse: “Ninguém lhes pode dar a liberdade. Ninguém lhes pode dar a igualdade, a justiça, nada. É preciso tomá-las.” E o meu amigo aparece no panorama, meio corpo, responde às questões do jornalista, remata como se soubesse que estou a vê-lo deste meu pequeno ecrã, diz: quem não está aqui na rua a lutar contra este regime é covarde, reclamar em casa é o mesmo que reclamar no caixão. E por detrás do jornalista, jovens esticam a bandeira e gritam: estão a usar balas reais, mas nós não temos medo de nada, podem nos matar; viemos pedir justiça, não temos medo da bala. Afinal o que nos abala como país? Eis a questão. Um pneu em chamas vai embater contra o carro da polícia. A cápsula do gás lacrimogéneo adverte: “Não lance directamente contra pessoas, pois pode provocar lesão grave ou morte. Irmão, veja aqui, está fora de prazo. O quê?? Afinal estão a usar gás lacrimogéneo que está fora de prazo!!? E eles sabem que não devem lançar isto directamente contra as pessoas. Veja só, aleijaram muita gente. É assim que acordou o país. Não consegues ver? Em algumas avenidas, há voluntários que ajudam a polícia a tirar as barricadas, noutras os tumultos pioram: bang bang bang, toma bala, caro cidadão. E o cidadão: toma pedra, caro polícia. Já não há espaço para o diálogo. Pneus a arder. Sangue. Fumo negro a turvar o país. O país em chamas. Dói-me a cabeça. Sento-me no sofá. Desligo o celular. É muita coisa por digerir. Ponho-me a pensar na famosa frase de Hugo Chávez: “Os que fecham o caminho para a revolução pacífica, abrem o caminho para a revolução violenta”. Será este o caso de Moçambique? Adormeço com esta questão a rodopiar no meu cérebro.

 

Por Fernando Absalão Chaúque

21.10.2024

[1] Minha senhora, vou lavar os meus tropas da Colómbia, queremos afrontar os gajos, vão render.

[2] Se conseguires pegar a cauda do leão, não o deves largar. Se o largares, o leão te matará.

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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