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O Outro Lado de Harare

 

São dois tipos altos, robustos e escuros. Têm faces pouco convidativas e expressões faciais amargas. Atiram-me os olhos com circunspecção, procurando estudar o meu semblante e a maneira com que elaboro as palavras, muita hesitação e pouca ousadia.

Não nos entendemos totalmente, eu recorro a uma língua que eles pouco dominam, e eles detestam expressar-se na língua que consideram colonial, abominam o passado, consideram-se pouco privilegiados comparativamente aos brancos, e deixam claro que, se pudessem, voltavam no tempo para corrigir a História, refutar a opressão colonial e mostrar o manguito ao indivíduo que pariu a ideia de que o Homem pode dominar o seu semelhante a partir de um argumento de superioridade racional.

Dias depois, após termos conversado sobre assuntos diversos, surgiu um laço de amizade entre mim e os tipos, que outrora me pareceram malfeitores de esquina.

Encontramo-nos dentro de uma casa de frangos e cafés, gente diversa apinhando o local… os homens, na maioria, têm faces ferrosas, as mulheres, entretanto, variam entre “quase bonita”, “pouco interessante” e “paciência.”

Após pedaços de frango mal-preparado e cafés amargos, levam-me para conhecer a zona que eles próprios consideram “The Other Side of Harare.”

Atravessámos a extensa Avenida Samora Machel para desaguar num beco escurecido, aparentemente sem saída, amarrotado de gente, mulheres cansadas, meio drogadas e seminuas, fumando cigarros e papéis.

Recuso-me a apreciá-las com ousadia e finjo ser a timidez em pessoa. Não percebo a linguagem delas, mas sei que só podem ser trabalhadoras adultas, fazedoras de coisas proibidas. Um dos meus companheiros diz: “I told you, this is the Other Side of Harare”, e eu reajo nos seguintes moldes: “I’m not interested.”

As minhas palavras, incrivelmente, atiçam as mulheres e, sem mais delongas, acusam-me de ser um indivíduo arrogante, pronto a menosprezá-las. Por isso, insultam-me em uníssono.

Misturam inglês com shona, vozes com gestos, cigarros com cuspidelas intermitentes.

Desculpo-me e digo aos meus companheiros que este lado de Harare não me diz absolutamente nada. Ouço mais um grito de indignação, mas o que realmente me assusta é a voz de um homem que grita: “uma vez aqui, não há mais volta, não se brinca de visitar esta rua em vão.”

Começo a tremer e a suar que nem um porco, mas juro de pés juntos que não me meto com mulher nenhuma, não quero nada e ponto final. Os meus companheiros insistem-me, mas digo-lhes: “prefiro pagar para sair daqui, quero pagar em troca de nada, não quero nada senão me ir embora”.

Passados longos minutos de negociações, apercebo-me que é totalmente proibido abandonar o local sem, pelo menos, ter avistado o produto que elas têm a oferecer… elas suportam tudo, mas não engolem desprezo ou rejeição. Ouço um dos meus companheiros dizendo: “se realmente quiseres sair daqui, tens que apreciar, só isso, olhar apenas, não precisas tocar ou cheirar.”

Constato que não há outra saída. Depois de os meus companheiros se terem envolvido, ménage à trois, numa pequena curva que se fazia passar por quarto, chegou a minha vez de fazer o que não queria fazer. Sento-me num pequeno estrado e sou obrigado a observar uma mulher despindo-se peça por peça.

Estudo-a com detalhe, e vejo a sua sujidade, a escureza pegajosa, os seios gastos, as nádegas flácidas dentro de uns calções colantes e a barriga ondulada caindo aos bocados. Sinto nojo e comichão, a minha bomba nem sequer se robustece, mostra-se desinteressada e indiferente.

Pensando que já me tinha enjoado o suficiente, vejo-a arrastando o colante para baixo. Ela movimenta-se como quem dança, dá-me as costas para que lhe veja atenciosamente as nádegas palpitantes.

Vejo-me de repente a vomitar com rigor, após ter notado a buraco que ela traz na bunda esquerda… tratava-se de uma ferida molhada e purulenta, provavelmente a verter ínfimas larvas. O vómito não parava, visto que a ferida da personagem tresandava sangue e medicamentos. Chorei a vomitar.

Pensaram no meu caso e, passados alguns minutos, dispensaram-me quase aos pontapés, após terem-me forçado a pagar um pouco mais acima do preço normal.

Já fora do local, ainda a vomitar, mas com menos agressividade, os homens que me tinham guiado ao longo da minha estada em Harare despedem-se de mim, pedem desculpas por tudo aquilo. Juram nunca mais levar um estrangeiro para lugares do género.

Por Albert Dalela

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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