Modernidade líquida – CAPÍTULO 1: EMANCIPAÇÃO – Resumo
Após a vigência de três décadas de uma evolução global nunca antes vista e do alargamento e multiplicação das fontes de riqueza e das formas de protecção, na visão de Herbert Marcuse, principalmente no ocidente, notava-se que poucas pessoas se engajavam para a se emancipar, isto é, libertar-se de várias formas vigentes de prisão social. Ademais, pouquíssimas pessoas demonstravam interesse nisso e dificilmente se podia denotar os seus desejos mediante o estado em que se encontravam.
Na verdade, tornar-se livre é, simplesmente, dissociar-se de qualquer forma de prisão, seja material assim como mental ou qualquer coisa que inibe o homem de se mover com tranquilidade no campo social. Libertar-se significa reaver a mobilidade diante de vários empecilhos.
Das várias nuances do termo liberdade destaca-se importa aqui destacar dois: a liberdade perante as sensações internas do indivíduo e o meio plural que o rodeia. Portanto, estes dois fenómenos interagem continuamente e é diante deles que o homem deve agir de modo a transcende-los e alcançar a sua liberdade.
O desinteresse pela liberdade, constatado evidente na sociedade por Marcuse, talvez tenha sido motivado pela manipulação ideológica que abundava nos anos que corriam e tinham como fim último a formatação de cérebros para que ninguém pensasse na possibilidade de ser livre.
As bênçãos mistas da liberdade
Trará a liberdade benefícios ou homem ou não? De facto, há uma complexa ambiguidade hermenêutica diante desta questão. Isto acontece porque o homem que devia lutar pela sua liberdade é, em contrapartida, quem pouco se preocupa em alcançá-la. Muitos indivíduos preferem viver em jugo para que não tenham de carregar responsabilidades, por eles próprios, e, portanto, o impostor continue a pensar por eles. Contudo, não há outra saída para alcançar a liberdade a não ser seguir as normas da sociedade. A liberdade não está acima dos parâmetros sociais. Transgredir as normas, mesmo que os rebelados não tenham se transfigurado em bestas e perdido a capacidade de avaliar sua própria condição, é uma agonia perpétua de indecisão ligada a um Estado de incerteza sobre as intenções e movimentos dos outros ao redor — o que faz da vida um inferno.
Ora, nos dias que correm, a questão de Marcuse foi transcendida, pois o homem moderno já alcançou total liberdade com que se pode sonhar. Na verdade, as correntes instituições sociais estão dispostas a deixar à iniciativa individual o cuidado com as definições e identidades. Actualmente, as comunidades são apenas utensílios da peça da individualidade em curso, e não mais as forças determinantes e definidoras das identidades.
As casualidades e a sorte cambiantes da crítica
A sociedade moderna, além de tantos outros evidentes problemas, ela revogou também o espaço de questionar os fenómenos sociais. Sendo assim, acha desnecessário examinar, demonstrar, justificar a validade de suas suposições tácitas e declaradas. Contudo, isso não significa que esta sociedade tenha invocado por completo o pensamento crítico. Significa que esta sociedade pegou a crítica do real, da insatisfação e da expressão dessa insatisfação e fê-las ingredientes indispensáveis no quotidiano. Isto significa que a sociedade da modernidade fluida inventou um modo de acomodar o pensamento e a acção críticas, permanecendo imune às consequências dessa acomodação e saindo, assim, intacta e sem cicatrizes das tentativas e testes da política de portas abertas.
A teoria crítica clássica, era muito diferente do modelo em que se inscrevia a ideia de crítica. A modernidade condensada era composta de tendências ao absoluto totalitarismo formando uma sociedade compulsiva. Neste âmbito, era visível que o objectivo principal da teoria crítica era a defesa da autonomia, da liberdade de escolha e da auto-afirmação humanas, do direito de ser e permanecer diferente.
No inicio da era do modernismo social, as sociedades foram libertas da crença no acto da criação, da revelação e da condenação eterna. Sendo assim, tendo os pés assentes nessas crenças, já não vislumbramos os parâmetros à perfeição além das limitações dos recursos que dispomos. Na verdade, movemo-nos e continuaremos a nos mover por causa da impossibilidade de atingir a satisfação.
Existem dois factos que fazem com que a modernidade actual seja nova e diferente. O primeiro é referente ao colapso gradual da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos; do completo domínio sobre o tempo vindouro. O segundo factor é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana foi individualizado, deixado à administração dos indivíduos e seus recursos. E os seus parâmetros resumem-se em: não olhe para trás, ou para cima; olhe para dentro de você mesmo, onde supostamente residem todas as ferramentas necessárias ao aperfeiçoamento da vida — sua astúcia, vontade e poder. Deste modo, já não há o Grande Irmão de George Orwell a monitorar cada movimento nosso. E não há mais grandes líderes para lhe dar directrizes e libertá-lo da responsabilidade pela consequência das suas acções.
O indivíduo em combate com o cidadão
A característica principal da sociedade moderna é a apresentação dos seus membros como indivíduos. Aliás, a sociedade actual existe em sua contínua actividade de individualização. Este fenómeno consiste em transformar a identidade humana de dado para tarefa. Portanto, nos dias que correm os seres humanos já não nascem em suas identidades, mas sim, tornam-se no que a sociedade já estabeleceu como norma.
Quando são transgredidas as muralhas sociais, a tarefa de auto-identificação se resume ao desafio de aceitar as normas sociais de classe e modelos de conduta. A individualidade como um lugar a que se pertencia por hereditariedade, foi substituído pelas classes como objectivo de pertença a ser buscado e continuamente renovado na conduta diária.
Nestes moldes, o indivíduo é o pior inimigo do cidadão. Na verdade, o cidadão transformou-se em uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade, enquanto o indivíduo tende a ser céptico em relação à causa comum ou à sociedade justa.
A individualização também deu origem à corrosão e à lenta decadência da cidadania. A visão de haver necessidade de reintegrar os individualizados no corpo republicano dos cidadãos é controversa.
O compromisso da teoria crítica na sociedade dos indivíduos
A função principal da teoria crítica costumava ser a defesa da autonomia individual contra as tropas avançadas da esfera pública. Deste modo, soçobravam diante do domínio opressivo do Estado omnipotente e impessoal. Na modernidade, é falso que o público coloniza o privado. O que acontece é o inverso. O privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser expresso inteiramente no vernáculo dos cuidados, angústias e iniciativas privadas.
Na visão individual, o espaço público é simplesmente uma tela gigante, na qual, as aflições privadas são projectadas continuamente. Portanto, os indivíduos regressam das andanças quotidianas ao meio público tranquilizados de que o modo solitário em que levam a vida é similar ao dos outros. Consequentemente, o poder anda distante da rua e do mercado, longe do possível alcance do controle dos cidadãos, para a extraterritorialidade das redes electrónicas. Isto acontece porque a sua forma de existência é a invisibilidade.
Perante esta realidade, os locais públicos deixam de desempenhar sua antiga função de lugar de encontro e diálogo sobre problemas privados e questões públicas. De facto, não há indivíduos autónomos sem uma sociedade autónoma, e a autonomia da sociedade requer uma auto-constituição deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros.
O facto acima é o que hoje se nota diante da teoria crítica social. Ela se reduz a unir novamente o que a combinação da individualização formal e o divórcio entre o poder e a política partiram em pedaços.
A crítica da política-vida
A nova preocupação de galvanizar a emancipação continua à espera de ser ocupada pela teoria crítica. Esta visão surge da interacção entre a individualidade de jure e de facto.
As tarefas que o homem carrega hoje em dia são iguais ao que era desde o começo dos tempos modernos: auto-constituir a vida individual e tecer e manter as redes de laços com outros indivíduos em processo de auto-constituição. A vida do agente liberto é composta por antinomias difíceis de avaliar e de resolver. Portanto, surgiu um traço anarquista em toda a teorização crítica. Por exemplo, via-se o inimigo apenas no lado do poder, e o mesmo inimigo era acusado de todos os retrocessos e frustrações sofridas pela liberdade. Esperava-se que o perigo viesse e os golpes fossem desferidos do lado público, em prontidão para invadir e colonizar o privado. Mas, ínfima atenção foi dada à perspectiva da colonização da esfera pública pela privada. Contudo, essa possibilidade subestimada se tornou hoje o principal obstáculo à liberdade.
É conveniente destacar que, o poder político implica uma liberdade individual incompleta, mas a sua abolição prenuncia a impotência prática da liberdade legalmente vitoriosa. O poder político, na verdade, foi enfraquecido pela enorme potência opressiva. Além disso, perdeu boa parte de sua potência.
Sendo assim, a verdadeira emancipação exige mais da esfera pública e do poder público. No momento em que a política pública descarta as suas funções e a política-vida assume, os problemas enfrentados pelos indivíduos em seus esforços para se tornarem indivíduos que de facto passam a ser não-cumulativos, destituindo assim a esfera pública de todo fenómeno que não seja a do lugar em que as aflições individuais são confessadas e expostas publicamente. Portanto, essa tarefa coloca a teoria crítica defronte de um novo alvo. Contudo, a busca de uma vida em comum alternativa deve começar pelo exame das alternativas de política-vida.