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Os Cegos por opção

Os Cegos por opção

Eram oito horas quando um grupo de jovens visitou a minha residência. Os seus semblantes denunciavam fome e pobreza mental. Vestiam camisolas que ostentavam a cor da paz, enquanto outros trajavam a cor do sangue, simbolizando o alimento ideal dos vampiros que se instalaram no Governo para drenar a esperança e o desenvolvimento do povo. Após saudá-los educadamente, um dos jovens, em representação dos demais, iniciou um discurso que me pareceu resultar de um ensaio prévio.

– Somos camaradas, como podem ver pelas camisolas que usamos. – Antes que ele pudesse continuar, interrompi-o e deixei claro que também me considerava camarada, pelo simples facto de tê-los recebido com simpatia. No entanto, tinha a certeza de que não compreenderam que a minha camaradagem era diferente da deles. Evitei proferir um discurso, uma vez que percebia que para eles, ser camarada era sinónimo de submissão à cegueira. Concedi-lhes um momento para se expressarem, apesar de desconfiar que as suas abordagens seriam desprovidas de substância.

– Viemos pedir votos para o camarada Vampiro. – Ele é a solução para os problemas do Município e promete melhorar a situação das estradas, hospitais e a falta de salas de aula nas escolas. Este camarada garante que, ao vencer as eleições, resolverá o problema do desemprego entre os jovens.

Antes que pudessem mencionar que o candidato desviaria a chuva para que não caísse nas áreas que ansiavam por dias de areia seca, pedi-lhes que parassem com a propaganda desnecessária. Brindei-os com um pensamento: “A fase mais crítica para o oprimido ocorre quando ele desperdiça o seu tempo a tentar convencer os outros de que a opressão é a melhor escolha.” Subitamente, todos se entreolharam, e o silêncio evidenciou a falta de comunicação após ter citado um pensamento que lhes escapou à capacidade cognitiva.

– Estou perante vítimas do actual sistema de educação, que também forma cidadãos incapazes de compreender a razão da sua própria opressão. Perdi a energia para continuar a dialogar com eles, mas não me faltou o desejo de lhes dar umas bofetadas para que percebessem que estavam imersos num sono repleto de sonhos ilusórios.

De repente, uma questão provocatória surgiu:

– Como avaliam a situação do país nos últimos anos?

Um deles reuniu coragem, não para responder à pergunta, mas para expressar a sua frustração em relação ao governo actual. – Na verdade, estamos aqui porque não temos mais nada para fazer. Somos jovens desempregados, e esta actividade nos garante pelo menos uma refeição mínima. No entanto, não sabemos em quem votar. Precisamos dessas camisolas para cobrir a nossa pele cansada pela pobreza. O governo matou a nossa esperança, e temos a certeza de que o país tem donos, restando-nos apenas esperar o dia em que seremos removidos. Enquanto esse dia não chega, somos meros palhaços. Mas não estamos sozinhos, às vezes estamos na companhia de pessoas educadas e até de professores que abandonam os seus locais de trabalho para apoiar os seus opressores. Por exemplo, há um jovem que se juntou à OJM e, consequentemente, ao partido, não para contribuir com ideias ou visões para o avanço dos jovens e do país em geral, mas porque acredita que as oportunidades de emprego estão ligadas ao partido camarada. No entanto, após quatro anos de casamento com o partido, a lua-de-mel foi apenas a oportunidade de participar nas festas milionárias do partido. Os seus currículos retornam na forma de embrulhos dos produtos que compra no mercado grossista.

A conversa ganhou um ritmo animador, e eu pedi à minha esposa que preparasse o pequeno-almoço para eles.

– Hoje a campanha será uma lavagem cerebral, e a refeição será aqui em minha casa.

– Nada mal, também percebemos em todas as casas que visitamos o nível de frustração das pessoas. Se não fosse pelos líderes comunitários, que também são eternas vítimas do Governo, teríamos enfrentado agressões.

– A vida está a tornar-se cada vez mais cara, pelo menos para o cidadão comum. A educação (professores), a segurança (polícias), a defesa (militares) e a saúde (médicos e enfermeiros) estão a ser afectadas negativamente. Esses são os pilares da nação, e se o Governo não está interessado no progresso do povo, acabará por destruir o motor que sustenta o país. Até mesmo os cegos conseguem ver como cada pilar que mantém o país de pé está a ser sabotado. Por que continuarmos num lugar onde sabemos que não há esperança de uma vida digna?

– Já imaginaram o futuro dos nossos filhos? Podemos fazer a diferença e recuperar a dignidade do país se soubermos escolher o nosso rumo.

Aos nossos olhos, existem dois caminhos, mas num deles desconhecemos as condições de transição, enquanto no outro estamos cientes da realidade sombria que aguarda a mudança. Qual deles escolheremos para percorrer?

– Reflictam sobre esta questão antes de plantar mais uma semente de desespero que ninguém estará lá para secar. Ninguém sabe o que é melhor, mas todos sabemos o que é pior.

Depois deste discurso, todos os jovens que partilhavam a mesa comigo pediram permissão para virar as suas camisolas, escondendo a imagem da vergonha que traziam nos seus corpos cansados das batalhas pela vida sem sucesso.

Jonas Francisco Muchanga

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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