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Nota sobre a humidade das fichas

Segunda-feira. Primeiro dia da semana, embora se diga que a semana comece no domingo, em verdade e bonito capitalismo, só na segunda-feira é que se mexem os indivíduos. Basta ver o trânsito, as moças nas bancadas com os seus sorrisos, o que para alguns empregos é o requisito mais exigido, pois um sorriso bonito vende mais e se não for bonito, que pelo menos tenha trinta e dois dentes e nenhum partido. É só ver como diferem as dentições, a medida que se distinguem os estabelecimentos, a farda, o crachá, o cargo e a qualidade do ar condicionado. Segunda-feira. É sempre segunda-feira para pobres e endividados se para ímpios não há descanso. Mas o mundo não é só isso, o mundo não é só triste, também é engraçado.

Ora vejam, “tudo junto” escreve-se separado. “O corrector” não corrige, antes nos borra a folha e os jogos da sorte primeiro dão azar. Sim. Os jogos da sorte dão azar. Admito que nunca fui um grande jogador, nunca gritei xeque-mate e se alguma vez marquei um golo tudo se deveu a uma boa assistência ou talvez a defesa da equipa adversária fosse péssima, essa é a minha verdade, mas eis a verdade universal: jogos da sorte primeiro dão azar. Podem atestar isso os jovens que por toda a cidade, ruas e avenidas, agora em bares e até na esquina, quando não batem uma, batem uma ficha.

E eu, que sempre presumi que «ficha» fosse um elemento de instalação eléctrica, fico sempre encabulado de cada vez que ouço que uma “ficha molhou”, quer dizer, fico sempre na tentação de abrir a boca e perguntar se ninguém morreu electrocutado. Mas, como sou abençoado, sou sempre salvo pela conversa seguinte, a respeito dos resultados dos jogos de futebol e os sorrisos que, felicidades não denotam, mas antes um rir para não chorar. Afinal, bater uma ficha, com valor igual ou superior a 5.000 kwanzas e não ganhar a aposta, é uma dor que, segundo o passageiro ao meu lado, nos acompanha toda a semana e que não podemos partilhar com a nossa dama. E, se não nos acompanha, isso diz muito sobre as nossas finanças, assim como permanecer no jogo e vencer com regularidade, diz muito sobre as nossas aptidões em álgebra e estatística. Pois nunca foi tão importante saber fazer contas em Angola, como nesses últimos dias em que em cada rua cruzamo-nos com cidadãos a bater a primeira ficha do dia.

“Homem sem ficha é homem sem futuro” – disse um novo sofista. Já estamos habituados a ouvir sofistas. Deu-se a galáxia de Gutemberg na idade média. Em Angola estamos no tempo do João Lourenço e está a dar-se a galáxia da ficha. Não vos disse? Jogos da sorte primeiro dão azar. Azar o meu, passo a passo me escravizando, na Rotunda da Cruz Vermelha, uma bancada verde como as mangas de dez (que já não há) ou de outro preço – desde que seja verde serve a comparação – só mesmo para aproveitar a sombra e, azar o meu, a moça por trás dela tem o infeliz trabalho de perguntar qual a minha aposta. Já viram? O descaramento. Abro a mochila devagar, solenemente, dentro dela dois livros, YAKA de Pepetela e outro de Lopito Feijoó, depois digo em alto e bom som, oito mil em Pepetela e dois em Lopito Feijoó!

Autor: Jorge Pimentel

Jorge Pimentel

Jorge Alexandre João Pimentel, nascido aos 23 de Janeiro de 2003, na cidade de Benguela, Angola. Escreve desde o Ensino Primário, rabisca Poesia desde os doze anos de idade. É autor do livro “TexTÍCULOS – Poesia de Esboço” (Kapa Edições, 2023). Colabora, ocasionalmente, para o Cultura – Jornal Angolano de Artes e Letras. É membro da Associação Ondjango Literário, uma associação litero-cultural responsável por uma biblioteca comunitária, onde desempenha as funções de Secretário P/ Relações Públicas.

Email: obrigadoj58@gmail.com

Instagram: jorgepimentel03

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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3 Comentários

  1. Viver, pressupõe perder. Perder, pressupõe ganhar. A vida é em si mesma uma comédia. Somos simplesmente espectadores, o resto a natureza faz a sua parte (Alegria e Tristeza). As fichas se tornaram escape para a juventude que anda hirto a procura de lombongo, tanto para realizar a sua vida e a de outrem (namorada). Hoje, todo mundo, de criança ao adulto, está empenhado nas fichas a fim de engordar as contas caso a sorte lhe bata a porta.

    Meus parabéns pelo artigo meu colega Jorge Pimentel. Brilhe…

  2. As fichas dão uma esperança ainda que ilusória para alguns, uma esperança de quem espera alcançar dos resultados o reembolso dos 5000 investidos.
    Uma esperança igual ao da letra da música ” se a vida começa aos 40, eu ainda nem nasci”
    As nossas ruas estão repletas de esperanças depositadas nas fichas que se batem em cada esquina.
    Parabéns pela belíssima crônica, Jorge Pimentel ❤️

    1. Muito obrigado, Marta. Mas, é preciso também depositar a esperanças em coisas além das fichas.

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