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Bulícios do Trânsito – 2

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Uffa! Pára, enfim, o machimbombo. Ar, doce ar! Embora impere em mim a ânsia da chegada, era já tempo para um intervalo nesta viagem e umas férias neste universo têxtil em que me refugio. Mas, apesar do proveito desse interstício, os gajos lá da frente, que requerem pausas religiosas para mijar e cagar, têm ainda o meu total desrespeito. Há cerca de uma hora, uma mamana vomitou xima com quiabo na calvície suada de outro passageiro e, com tal diabólica unção, conferiu à atmosfera do machimbombo o fedor, o ardor, o fragor e o torpor do inferno. Há cá também este moço que esteve semi-morto desde Xai-Xai até Inharrime; as conjunções de uma malta que esteve a circundar a sua esquisitice e de outra que esteve a murmurar aos Céus a sua miséria disputam agora o mérito de sua ressurreição, na mesma medida em que se ignora o facto óbvio de a morte o haver vomitado de tão sórdido. Merda! Merda! merda! Precoce nostalgia. Beijasse-me agora a retina a face pura, limpa e viva de minha amada! Bastavam-me apenas os raios do seu sorriso para que eu pudesse suportar o ónus da viagem. Bastava-me apenas o seu olhar para que tudo isso se pudesse converter em paraíso. É pois em sua alma que os Céus resguardam o Éden, pelo menos o da minha configuração. Eu a amo como só se deve amar a Deus. Eu a amo como apenas Deus pode amar. Em verdade, talvez um pouquinho mais. De formas tão impossíveis!

Sinceramente, há gajos que não deviam cá estar. Alguns deviam estar num chapa rumo a uma igreja, seja evangélica ou pentecostal. Ora, o autocarro não é campo próprio de pregação. E há quem não se interessa pela salvação com que é golpeado. Outros deviam estar numa ambulância a caminho de algum hospital. Pois, é próprio de doentes viajar em ambulâncias, porra! Há também os que me poupavam o desrespeito se estivessem em um táxi para algum restaurante. Por que, no mesmo autocarro, alguns podem comer e beber aos seus caprichos e eu não posso beber nem fumar às minhas vontades? Não é também isso uma forma de exclusão? Urge a deferência pela diversidade de preferências. Ora, o que os incomoda nas minhas vontades também me perturba nos seus caprichos. Eu, coitado, devia estar a caminho do consultório, para a atenção e o cuidado do Dr. Viktor, antes que a sevícia desta viagem me enlouqueça na íntegra. Eh, pá! Há também o madala, que ia do meu lado esquerdo com a sua tosse, que teve de descer há pouco porque descobriu-se no machimbombo errado. Em Moçambique, durante as viagens interprovinciais, há sempre um gajo que não sabe para onde vai, mesmo que saiba. Enfim… Eu só queria um pouquinho de paz. Eu queria apenas saber descansar. Francamente, era-me mais favorável um desmaio que tivesse a lonjura fiel desta viagem.

Há, nessa cadeira em frente de mim, uma gaja chata que me tentou infestar a fleuma com a pregação do evangelho. Estive a ignorá-la desde o arranque tardio desta viagem. Tive então de cagar em voz viva no fulcro do seu sistema moral para travar a chatice de sua insistência. Acho que funcionou. Embora esteja agora a murmurar maldições em função de mim. A propósito, a igreja do meu tio me acusa de possessão demoníaca. Demónios de maluquice. Demônios de morte. Entre outras aberrações. Alguns psicólogos já me acusaram das mesmas coisas, embora chamem de transtornos, distúrbios e outras palavras interessantes. Eu recuso as categorias de demónios, transtornos e distúrbios. Mas estou cônscio da propensão para a loucura e da pulsão de morte. Sou um homem normal. Um homem normal pode enlouquecer. Um homem normal pode matar. Viver ou sobreviver e morrer ou matar são ímpetos normais em todas as espécies. Não me estou a defender. Não me estou a justificar. Estou apenas a clarificar factos. A pulsão de vida como a de morte afectam o género animal, inclusive a espécie humana, em níveis diversos. Não responderei aos potenciais porquês disso. Não hei-de agora esgotar a esferográfica em filosofices.

Outra paragem exausta. Agora no Inchope. São já cerca de três dezenas de paragens para mijar, cagar,… retardar a viagem e pagar as portagens desta estrada gratuita em que se arrastam, de vala em vala, mais de meio milhão de viaturas diárias. Esta é então mais uma paragem para negociar o trânsito com a polícia. Tratam de altas notas, do outro lado da estrada, um chapa e um txopela, ambos em estado de acidente. Parece que a circulação rodoviária sabe fazer bem a barriga da Polícia de Trânsito, que recebe melhor durante o dia do que ao final do mês. Mas… Que merda de sentido têm, afinal, o trânsito e as portagens nesta estrada?! No Rio Save, paga-se a portagem para deteriorar o carro, pois a partir desse ponto, a estrada parece mais uma sucessão de valas comuns. Eu, que sento agora nas traseiras, tenho o cu amolgado com [e como] os pneus deste machimbombo. Honestamente, não sei mais se chamo isso de estrada com buracos ou de buracos com estrada. Eis então o resultado da subtração pública de algarismos na equação do desgoverno.

A barrulhagem da polícia (e da ambulância [?]) em suas sirenes me inibe o árduo intento de uma soneca. Estamos outra vez em suspensão de trânsito. Ao que parece, houve aqui um outro acidente de viação. O que sobrou das duas viaturas bloqueia agora a estrada. Pela janela, vislumbram-se os corpos enfileirados em grupos que parecem de homens, mulheres e crianças. O torpor se divide agora em alarme, pranto, desespero, gemidos e murmúrios. Alguns passageiros descem para passear os olhos mais de perto na cena do acidente. Digo,… para passear as telas dos telemóveis, a ser mais honesto. A polícia tenta, sem ledo êxito, estorvar o cenário. Eu daqui não saio, pelo bem de mim e de outrem. Há já lá tantos braços a ajudar que o excesso de gente só há-de ser útil para atrapalhar. E eu não posso lidar com tanto sangue. Temo que se venha sangrar mais ainda pelas minhas mãos de artista. Um engenhoso artista da morte. Enfim… Devo cá admitir a beleza acidental deste cenário. É-me curioso que, quando se planeia uma viagem, muito facilmente se exclui do programa a potencialidade de algum acidente. As pessoas têm demasiada fé no favor dos casos. E isso é um vício doentio. Com quanta estupidez se pode crer que haverá de ser prazerosa uma passagem pelas estradas feridentas deste país? E há nisso uma diversidade de culpas. Há a culpa de quem aqui paga passar. Há a culpa de quem aqui dirige o carro. E há também a culpa da barriga que dirige o país na arduidade dessas estradas. Eureka! Acho que hei-de agora descer. Vou tirar proveito da suspensão de trânsito para fumar, finalmente.

A viagem prossegue na arduidade descompassada do seu ritmo. Ao que parece, viajar é isto de partir de um lugar consideravelmente feio para um outro lugar ilusoriamente belo, ou vice-versa. O motorista é um tolo que, incônscio do destino de sua própria vida, adquiriu experiência para dirigir a vida de outrem a um destino preferencial. O cobrador é um mal desnecessário. O passageiro é um idiota que, julgando-se incapaz de dirigir por si mesmo a sua vida, deixa-a sob a direcção de um outro tolo – o motorista –, que o guia a sucessivos destinos provisórios enquanto a morte o aguarda na terminal da linha do tempo. E o acidente de viação é um subproduto manente da viagem; uma probabilidade automobilística ignorada por inépcia condutora e passageira e, por isso, é quase sempre uma surpresa cruenta a sua manifestação. Então, o melhor de todas as viagens era jamais ter viajado, nem para a vida e nem para a morte – ei a inconveniência da nascença. Mas… há um oásis a que anseio agora regressar. Um lugar em que sou livre. Um [re]canto em que sou suigeneris. Um sítio em que sou mais Eu. Um lugar que posso chamar de lar. As trevas abissais do meu quarto. Onde jazem as minhas configurações pueril e puberil. Entretanto, até lá, ainda me resta suportar a agonia de mais um terço desta estrada, e é muito possível que eu só venha a alcançar o destino desta viagem quando as minhas férias já tiverem terminado…

Por Ericson Sembuer

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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