E o povo continua a percorrer as avenidas, a marchar, a expelir pela garganta o que lhe corre na alma: socorroooo, socorro, socorroooo, socorro! Queremos justiça! Queremos mudanças! Estamos cansados de sofrer! Estamos cansados de ser enganados! E os dísticos continuam a colorir as inúmeras artérias do país: Povo no Poder, Artigo 51. O que te inquieta?, pergunta-se a um dos jovens manifestantes. E ele dispara: São maningue cenas, boss; mas agora o que mais me inquieta é a polícia. O que fez a polícia? Está a atrapalhar a nossa marcha. Está a nos lançar gás. Eis o dilema: o povo marcha pedindo gás de cozinha e só recebe gás lacrimogéneo. Come on, people, afinal manifestar não é direito de todo cidadão? E a polícia diz que lança gás porque há vândalos nos grupos dos manifestantes; vândalos que só querem destruir bens públicos e saquear estabelecimentos. E quem disparará contra os vândalos que estão no aparelho do Estado e há décadas destroem e saqueiam o país? E um outro jovem clama: o que me inquieta é a massaroca que não coze, 50 anos que não coze, acabamos quantos sacos de carvão? E há mais dísticos a vociferar: Moçambique é para todos os moçambicanos. Oh, pátria amada vamos vencer. Deixem o povo se expressar. E eu vejo tudo do pequeno ecrã pousado nas minhas mãos. As TVs já não são confiáveis, parece que estão alienadas, não transmitem o cenário verdadeiro que se alastra por quase todo o país. Apesar da internet estar limitada, vejo toda a verdade a partir deste pequeno ecrã enquanto ouço o rádio do vizinho num volume ensurdecedor, a gritar: get up, stand up, stand up for your rights, de Bob Marley, e lembro-me de o ter ouvido logo de manhã a comentar com os filhos: hoje só vou tocar músicas revolucionárias. E continuo preso no ecrã, chegam-me imagens e vídeos desconcertantes: jovens baleados; polícias apedrejados até a morte. É o “Olho por olho, dente por dente” a imperar em Moçambique? Chega-me a informação de que jovens que vinham ao Sul para a marcha do dia 7 foram retidos pela polícia em Gaza. É agora crime viajar livremente dentro do território nacional? Voltaremos ao sistema de guias de marcha? E há pneus a arder em vários pontos do país; estabelecimentos e instituições incendiados. E fala-se em revolução. Serão “revolução” e “destruição” palavras sinónimas? Os médicos estão também em marcha. Os seus dísticos gritam: Eu sou médica e também sou povo; O povo tem direito à vida e segurança; Basta de Mortes por balas perdidas. Não à violência, sim à vida e aos direitos humanos. Stop o assassinato do povo. Todo o país está em marcha e os dísticos continuam a rematar: Nenhuma bala é perdida se atingiu o alvo; NÃO ME MATE, PROTEJA-ME, SR. AGENTE; PARA QUEM LIGAR QUANDO O ASSASSINO É A POLÍCIA? Eis a questão, estampada a preto nas costas de um homem em movimento na avenida. O meu vizinho continua com a sua playlist revolucionária. Agora toca Lafamba bicha, de Jeremias Nguenha, há bocado estava a tocar “A marcha”, de Azagaia. E o povo continua a marchar. Greve geral. Parece que só hoje percebeu o que Azagaia dizia nas entrelinhas das suas letras. E um dos jornais com maior circulação no país destaca: “Ao sexto dia da paralisação geral, Moçambique continua suspenso e sem qualquer iniciativa razoável para se desligar o estado de tensão em que o país está mergulhado.” Um amigo meu escreve no FB: “Já basta a pólvora… Os intelectuais do “partidão” não ajudam em nada neste momento. Há muita gente competente que, neste exacto momento, combate a própria inteligência, infelizmente. Ninguém mais precisa se manchar com pensamentos tendenciosos que, pelo contrário, alimentam o ódio e a indignação, ao invés de apresentar soluções. Aliás, agem como se não soubessem o que o Povo quer e precisa.” E mais um dístico põe o dedo na ferida: NÀO É SÓ QUERER GOVERNAR, NÓS TEMOS QUE QUERER PARA VOCÊS QUEREREM. É disto que se fala quando se diz que o feitiço virou contra o feiticeiro? E há dísticos que nos chegam da diáspora: 7 days or 5 years. We are tired of being enslaved. Povo no poder. Há pneus a arder, obstáculos nas vias. E continuo a receber imagens e vídeos desconcertantes: uma criança baleada quando regressava da escola; jovens baleados; adultos atingidos por balas nos seus quintais; polícias apedrejados até a morte pelos manifestantes. Sangue a ser derramado. Vidas que se perdem num ápice. Infra-estruturas importantes que levaram décadas a erguer são derrubadas num segundo. O amanhã é uma incerteza, meus caros. E continuo preso no ecrã: chegam-me mais imagens e vídeos: jovens baleados; polícias apedrejados até a morte. Armas e um Mahindra arrancados da polícia. Qual é o destino? E continuo preso no ecrã. Apesar da instabilidade da internet chegam-me mais notícias: “Ministro da Defesa apela à união e ao diálogo face à tensão pós-eleitoral.”; “PRM lança gás lacrimogéneo nos prédios para impedir residentes de baterem panelas como forma de manifestação.” E o meu vizinho continua com a sua playlist revolucionária. Agora toca GPro, País da Marrabenta, ouço uma passagem do 100 Paus: “Promessas falsas não enchem barrigas/ Deixem dessas graças são bem antigas/ Mais força para o povo que continua firme.” Depois da GPro segue Rosália Mboa, Regalias. E uma vizinha, quase na terceira idade, invade-me o quintal e diz: “Mano, peço para me activar essa tal coisa que chamam VPN.” Recebo o celular e digo para ela voltar em 15 minutos. E continuo a acompanhar o infinito baile de dísticos: “PAÍS MUDO NÃO MUDA, GRITE PELOS SEUS DIREITOS”, “A MAIOR INCITACÃO À VIOLÊNCIA FOI O ROUBO DA VONTADE POPULAR.” E Mais uma notícia: “Manifestações forçam África do Sul a encerrar principal fronteira com Moçambique.” E há quem faz de tudo para continuar com o seu negócio, posta foto de uma bombinha e escreve: vende-se telefone. E alguém comenta: Aceita VPN isso aí? Telefone que não aceita VPN já não estamos a tratar. É evidente: “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, escreveu Camões. E o povo continua a percorrer as avenidas, a marchar, a expelir todo o fogo que lhe corre na alma. Emiliano Zapata disse: “Se não há Justiça para o povo, que não haja paz para o governo”. Eis o veredicto.
Por Fernando Absalão Chaúque
06.11.2024
A arte sempre teve um papel preponderante nas revoluções. Neste contexto, as suas crónicas servem-nos de fundamento e testemunho desse grande momento histórico em Moçambique.