O NOME QUE A CIDADE ESQUECEU é o mais recente romance de João Tordo, publicado em 2023, assinalando duas décadas de carreira do escritor que já conta com 20 obras (incluindo esta) no seu percurso. O enredo situa-se em 1991 e gira em torno de Natasha, uma refugiada de guerra, que consegue um emprego peculiar: ler a lista telefónica da cidade para um homem chamado George B, recluso num apartamento.
Inspirado numa história verídica publicada no New York Times, em O nome que a cidade esqueceu Tordo cria uma narrativa enigmática movida pelo acaso e pela memória. O romance mergulha na solidão, uma “grande doença dos nossos tempos”, confrontando as personagens e os leitores com o passado, numa tentativa de reconciliação.
Abaixo apresentamos 16 excertos retirados deste livro.
- De que serve a liberdade, quando estamos tão sozinhos? É uma prisão, é ainda pior do que o cárcere, onde somos forçados a olhar para dentro, a procurar dentro de nós recursos para superar a privação, ao passo que, cá fora, vamos procurando, no mundo, formas de mitigar a angústia. E nada serve.
- Para uma pessoa apaixonada, um sorriso ou um «olá» é já uma montanha de ilusões.
- Ocasionalmente, nas noites de insónia, eu espreitava da janela a montra iluminada da lavandaria […]. Mas só encontrava rostos familiares do bairro, gente de passagem, desconhecidos. Cada um na sua vida, apartados e silenciosos, cumprindo as tarefas de lavar e secar a roupa. Era a solidão das grandes cidades: não apenas física, mas uma espécie de ordem silenciosa para que cada um se metesse na sua vida.
- O tempo é assim, creio eu: cuida de nós da mesma maneira que trata das árvores e dos rios, dos pássaros e das nuvens. As feridas saram; é a sua natureza.
- Não há nada pior na vida do que uma pessoa ficar completamente sozinha. Porque às vezes dá vontade, sabes? Dá vontade de mandar o mundo inteiro à merda, de nos remetermos ao nosso canto, ao nosso silêncio. Mas não funciona. Nunca funciona.
- Um dia, toda a gente que está agora na Terra já terá morrido, e não falta assim tanto tempo. A vida que temos hoje será apenas um sonho que alguém terá no futuro. Não mais do que um sonho.
- O que é um ser humano, interrompeu George, senão um poço de defeitos, de coisas ruins e malcheirosas, escondidas sob camadas de maquilhagem e fingimento, de perfumes e ilusões? Não te deixes enganar. Tudo o que vês lá fora é um truque de magia, uma cortina de fumo. O que te parece progresso é controlo; o que te parece liberdade é uma prisão.
- O importante nesta vida é sobreviver, porque tudo conspira para que sejamos aniquilados. Os mais fracos, quero dizer. Os mais pobres, os mais desprotegidos, os doentes, os que crescem em circunstâncias adversas.
- Toda a vida humana é um extraordinário acaso mascarado de destino, e um contrato social inventado pelos especialistas para nos manterem presos ao statu quo. Ordeiros, obedientes. Ou então […] ou então há um Deus […] uma espécie de inteligência qualquer que nos coloca no caminho uns dos outros, desafiando toda a lógica, mas isso é conversa de supersticiosos, de gente que não quer enfrentar a dura realidade da Natureza, daqueles que não conseguem aceitar que o Homem é um selvagem, porventura um bom selvagem, após séculos de domesticação, mas, ainda assim, um selvagem.
- Não há direito de uma pessoa ter tanta pena de si própria, é preciso saber viver com aquilo que nos calha em sorte.
- Talvez o ser humano seja mesmo assim, uma criatura que só começa a rir-se verdadeiramente — a rir com o corpo todo e a alma inteira — quando já não resta nada para levar a sério, quando está exausto de tentar, com todas as suas forças, que a vida lhe corra de feição.
- Se queres tirar-te da forca, tira primeiro os outros da forca. Entendes o que quero dizer? Eu agora vejo as coisas assim: se queres sentir-te livre, antes, tens de te libertar dos outros. Ou seja, deixá-los serem como são. Tirar as mãos das coisas, separarmo-nos delas e esquecer esta mania de que podemos salvar toda a gente. Como se fôssemos Deus. Este nosso vício de não sermos capazes de deixar os outros em paz, caramba!, é a causa da nossa dor sem fim.
- Conhecemos a tristeza demasiado cedo, ainda em crianças, quando não estamos preparados para abarcar esse género de sentimentos. Os nossos pais, se souberem fazer bem o seu trabalho, ajudam-nos a perceber que não estamos sozinhos. Porém, quando eles não sabem o que fazer connosco, ou pura e simplesmente nos abandonam, ficamos agarrados a esse momento do passado. Essa tristeza que não soubemos assimilar contamina o futuro. Dá cabo de tudo. Sabes o que quero dizer? Acho que me compreendes, que também conheces esta experiência de não conseguirmos acolher a tristeza na amplitude dos nossos pequenos braços.
- No amor, acontece quase sempre isto […]. Encontramos uma pessoa e nesse momento ainda temos uma porta por fechar atrás de nós; permanecemos no vão das escadas, e essa nova pessoa é uma porta entreaberta à nossa frente. Levamos algum tempo a fechar a porta que ficou para trás , a sair do patamar, a dar o passo em frente. Se, por acaso, nos forçam, se tentam empurrar-nos, se nos acossam, o mais provável é que fiquemos parados nesse vão durante muito tempo. Às vezes, a vida inteira.
- O esquecimento é uma coisa bizarra, não achas? Apaga quase tudo, mas deixa uns resquícios. Como quando nos lembramos apenas do final de um sonho, mas sabemos que temos dentro de nós o sonho inteiro.
- Nesta sociedade, a privação material provoca enormes bloqueios. Destrói os hipocampos. Anula as memórias. Corrói as emoções.
Título: O nome que a cidade esqueceu
Editor: Companhia das Letras
Lançamento: novembro de 2023
Páginas: 336