Eu poderia ter lido este livro num piscar de olhos, mas não o fiz. Poderia não ter escrito nada sobre este romance, mas o meu “egoísmo” deixou-se humilhar. Quis que eu partilhasse alguma coisa sobre a vida e sobre a complexidade dos assuntos abordados por Philip Roth.
Os bons romances têm o defeito de seduzir o leitor com técnicas hipnóticas, robustecidas por uma linguagem que responde a circunstâncias específicas da narrativa. Quando a linguagem vai ao encontro dos personagens, institui-se uma positiva peça de ficção literária que se posiciona na zona dos “clássicos”. Roth usa os instrumentos de construção ficcional à semelhança de um carpinteiro que excelentemente sabe utilizar o serrote, o martelo ou o alicate. Lês os seus livros e ficas com a sensação de ter sido atropelado por um comboio de emoções penetrantes.
Tive a sorte de conhecer Roth através da sua obra de estreia publicada em 1959, um livro de contos que se intitula “Goodbye, Columbus”. Foi através deste livro que se lançou o homem que viria a suscitar, dentro da sociedade americana, um debate aceso sobre os judeus, tendo em conta os seus vícios e virtudes. A masturbação, naqueles tempos, constituía um tabu dogmático, mas as provocações de Roth abriram espaço para que a sociedade, através da literatura, desse atenção a aspectos cruciais da sua vida particular e vergonhosa.
Aliás, dentro da comunidade judaica, por conta de certas revelações polémicas, o autor foi alvo de críticas. Seus próprios pais, judeus praticantes e conservadores, chegaram a sentir-se ultrajados e desrespeitados. Apesar destes negativismos, Roth não se curvou, continuou a escrever livros atrás de livros, sem se deixar silenciar por quaisquer criaturas. Foi engolido pela morte ainda obstinado em lapidar peças impactantes. Diversas e visivelmente maravilhosas.
Na “Mancha Humana”, é-nos apresentado o ilustre professor Silk, processado “criminalmente” por duas estudantes negras por ter pronunciado a mal conotada palavra “spook”.
As estudantes em questão e a direcção universitária, infelizmente, condenam o professor, ignorando a vasta semântica da palavra “spook”. Os que deviam ter olhos para ver com a mente ignoram a complexidade da linguagem, reduzem-na e ignoram os vários sentidos que determinadas palavras podem portar. O drama por detrás da caça ao professor manifesta-se como se este tivesse pronunciado a “ultrajante” palavra em representação de uma facção racista.
Teria sido menos penoso se Silk não tivesse recorrido à auto-demissão como forma de silenciar a polémica, mas tudo dá para o torto à medida que a narrativa prossegue.
O professor, antigo reitor de uma universidade provinciana, envolve-se com uma mulher analfabeta e faxineira, muito mais nova e pouco atraente dentro dos corredores intelectuais.
As qualidades desta mulher, tidas como insignificantes, originam uma nova polémica que gira em torno da seguinte-questão: por que motivo um inquestionável intelectual se apaixonaria por uma analfabeta faxineira?
Algumas vozes dizem que Silk é um aproveitador que, recorrendo às suas faculdades intelectuais, manipula uma mulher de baixa categoria.
A verdadeira categoria que realmente preocupa Silk, entretanto, reside nos incessantes momentos de sexo, rejuvenescidos pela flexibilidade desta faxineira singular, que vira os próprios filhos devorados por um fogo maldito.
A voz da narrativa pertence a um escritor que também escreve um romance intitulado “Mancha Humana”. Amigo de Silk, fascinado pelo passado e por mistérios diversos, como, por exemplo, aspectos raciais das comunidades americanas, e a polémica por detrás do escândalo que envolveu Bill Clinton, então Presidente dos Estados Unidos, com uma mulher no salão oval da Casa Branca, em momentos de sexo oral.
O “blowjob” de Clinton é uma espécie de sarcástica trilha sonora do romance, bastando prestar atenção aos diálogos e às reflexões de uma jovem professora de origem francesa obcecada em exibir que lera tudo sobre os clássicos.
Reler este livro é o que se pede a um leitor que se viu instigado e honrado por um belo romance, escrito por um ilustre escritor. Ilustre no verdadeiro sentido da palavra!
Por: Albert Dalela