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O diabo da sala sete

Quando pouso os pés no corredor do terceiro pavilhão e caminho em direcção à sala sete, um calafrio inefável apossa-se do meu corpo. O coração acelera-se; o sangue entra em ebulição e, no momento em que abro a porta, apesar da temperatura amena que hoje acaricia o ambiente, as minhas axilas alagam-se de suor. É assim que me sinto sempre que me dirijo à sala sete. Esta porta é, para mim, um portal que leva ao mais puro dos infernos. Duas vezes por semana, durante quarenta ou oitenta minutos, os asquerosos demónios desta turma atormentam-me. Por mim, não mais entrava nesta sala, mas não há escapatória possível, tenho que suportar este bando de asselvajados adolescentes para não perder a minha carga horária e comprometer o salário.

Na verdade, o martírio começa eu ainda a sair da sala dos professores. Várias vezes, ouço os sathanyokos a gritarem: Mitocôndria tá  vir; Guanina Guanina tá vir; pessoal, Ácido Desoxirribonucleico xavuya[1]. Todavia, estas alcunhas não me ferem. Já fui aluna, sei que cada professor tem um cognome pelo qual o identificam. Por exemplo, tive professores que chamávamos de Raiz Quadrada, Question Tag, Júpiter, Primeira Guerra Mundial, Borregana, John Dalton entre outros. O que me arrasa o âmago é quando ridicularizam o meu substantivo próprio. Em vez de Horta, chamam-me Hortaliça. Quando me vêem, eles gritam: Hortaliça tá vir; professora Hortaliça tá vir. Isso inunda-me de raiva. Tivesse eu uma arma, matava-os a todos. O meu pai também é culpado. Entre tantos nomes que pairam por aí, por que motivo foi ele escolher Horta? Sinceramente, vontade de trocar de nome não me falta. Bolas, pá!

 

Caminho em direcção à secretária. O barulho maltrata-me os tímpanos. No fundo da sala, vejo dois meninos a perseguirem-se por cima das carteiras. Macacos de merda, tenho vontade de dizer-lhes na cara. Mas, imediatamente, engulo o insulto. Respiro fundo. O monóxido de catinga que paira na sala invade-me as fossas nasais, enquanto pouso na secretária a bolsa e o meu caderno de planos. Os alunos colocam-se em pé  e saúdam-me. Excepto um que permanece sentado, o Shelton. E só depois de eu afrontar-lhe com  um olhar fulminante é que se levanta. Se esta turma é para mim um inferno, o Shelton é a própria encarnação do diabo.

Não consigo responder-lhes a saudação. Sinto o suor a escorrer na minha cara, os poros a libertarem líquidos que me alagam o vestuário. Se não tivesse a bata por cima, todos notariam os lagos que a minha epiderme projecta às vestes.

Com os olhos, arrosto mais uma vez o Shelton. Ele responde com um sorriso sarcástico. Crescem-me os nervos. Uma forte tontura turva-me a visão. O cheiro da catinga provoca-me náuseas. Acomodo-me na cadeira. Fecho os olhos. Não suporto os alunos desta turma, principalmente o Shelton. Os adolescentes são seres difíceis de domar. Confesso, eu nunca quis ser professora. Tornei-me uma porque o meu pai decidiu por mim, sem se importar com as minhas aspirações.

Eu queria formar-me como profissional de informática, especializar-me em web design e programação. Mas o meu pai não deixou; impôs-me Licenciatura em Ensino de Biologia. Disse que era importante enveredar pelo estudo da vida em vez de informática. Ainda tentei argumentar recorrendo ao facto de estarmos na iminência de um mundo totalmente digital, mas o velho não aquiesceu.

No ano passado, durante a festa de graduação, ele confessou que a Biologia era o seu curso dos sonhos. Por isso, insistiu para que eu o fizesse. Esqueceu-se que cada um tem o direito de escolher o seu caminho. E eis-me aqui, a trabalhar no que nunca aspirei. E neste que é o meu primeiro ano de trabalho, calhei com esta turma cheia de vermes mal-educados. Shelton é o mais indisciplinado da escola e as suas notas dificilmente são positivas. Muitas vezes, ele vem a escola embriagado. Ouvi, na sala dos professores, o colega que lecciona matemática a dizer que o guarda já flagrou o miúdo a fumar cannabis nas traseiras da direcção pedagógica. Tivesse eu uma arma, ele seria o primeiro a levar o  chumbo grosso na testa. Desculpem-me, não sou uma homicida, mas há pessoas que nunca mudarão, por mais que sejam punidas de todas as formas. O que a sociedade ganha mantendo esta gentalha no seu ceio? A melhor saída, do meu ponto de vista, é a morte; transformar todos os que vagam inúteis na terra em estrume.

Há alguns meses, durante a aula cujo tema era introdução ao estudo dos anfíbios, perguntei se alguém conhecia algum ser desta espécie. Shelton levantou a mão, colocou-se em pé, e disse:

“A professora.”

“O quê?”

“A professora é um anfíbio, porque é muito baixinha.”

A turma toda pôs-se a gargalhar. Perdi o chão. Se tivesse uma Glock, teria sido exactamente neste instante que os seus pais teriam ficado de luto. Se calhar, em vez de chorar, iriam agradecer-me pelo tão generoso gesto. A seguir ao sucedido, dei-lhe uma falta vermelha e expulsei-o das minhas aulas por dois meses. Porém, minutos depois, o director chamou-me ao seu gabinete e ordenou:

“Professora Horta, tira a falta vermelha e deixa o Shelton frequentar as aulas.”

“Ele faltou-me com respeito, senhor director.”

“Percebo, professora, mas faça o que eu digo.”

“Por quê?”

“Porque eu sou Deus aqui nesta escola.”

“O miúdo chamou-me anfíbio!”

“Isso não me interessa. O Shelton é filho de um grande camarada lá do partido e eu não quero cair, não quero perder o meu cargo.”

Na aula seguinte, os outros alunos fizeram questão de me lembrar que tinha expulsado o Shelton. Mas não consegui contrariar a ordem que recebera. Ademais, o director sublinhara que, acontecesse o que fosse, nada devia fazer contra o Shelton e, no fim do ano, ele devia ter uma média excelente  e em nenhuma hipótese devia reprovar.

Não é por mal, mas o meu director não tem postura para o cargo que ocupa. Há tantos funcionários do distrito com um perfil melhor. É difícil entender como terá ele ascendido. Afinal, quais são os critérios para a nomeação de chefes? Ah, já sei: o nível do lambebotismo ao partido ao qual ele sempre alude. Mas isso é uma outra história.

Abro o livro de turma, começo a fazer o controlo de presenças, poucos estão preocupados em responder. Grito, chamo-lhes atenção. Mas muitos me ignoram. A minha voz, tão fina e frágil que é, talvez não chega aos seus ouvidos. De repente, a chefe de turma, com a testa enrugada de indignação levanta-se e grita, autoritária:

“Colegas, parem de provocar barulho. Parem com abusos, se fosse professor de Matemática ou de Química já teriam trancado essas vossas bocas grandes.”

Ela senta-se. Uma luz acende-se na minha mente. Fecho o livro de turma. Já tenho a solução para o meu problema. Levanto-me. Após a intervenção da chefe, todos mantêm-se em silêncio, inclusive o diabo do Shelton. Caminho até a porta; numa das salas do outro pavilhão, vejo o professor de Química. Saio da sala. Limpo o suor na cara. Respiro fundo. Estou livre da catinga. Decido ir ao encontro do colega. Se ele estiver ocupado, procurarei o professor de matemática. Preciso deles saber o que fazer para manter a ordem na sala de aulas. Estou cansada de ser abusada por adolescentes. Ao descer o degrau do pavilhão, ouço o Shelton a gargalhar como um louco e diz:

“Hoje não há aula de biologia, a dona Hortaliça está trombuda!”

“É tudo sua culpa, Shelton!”, grita a chefe de turma.

“Não há problema… também não sabe dar aulas aquela gaja…”

Por Fernando Absalão Chaúque

[1] Está a vir.

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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