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As metáforas visuais em Música de Intervenção Rápida de Azagaia

Em 2013, na ânsia da revolta sobre a brutalidade policial que perturbou os corações de milhares de moçambicanos, Azagaia exprimiu o sentimento que caracterizou o momento, com o tema “Música de intervenção rápida”. Longe de tentar dissipar qualquer tipo de incompreensão do texto em música, este artigo visa minuciar em análises o vídeo e as metáforas assentes, que ajudam a contar a história e a complementar a própria composição.

‘Música de intervenção rápida’ é uma resposta imediata e, principalmente, artística aos acontecimentos em 2013, concretamente no mês de Março”, em que “os antigos combatentes da Luta de Libertação Nacional amotinaram-se no edifício do conselho de Ministros, para protestar contra o incumprimento das responsabilidades do Estado para com eles (concessão das pe nsões) e, de imediato, a polícia de elite, a extinta Força de Intervenção Rápida (FIR), foi accionada para intervir, escorraçando-os com gás lacrimogéneo, mesmo sem estes representarem perigo algum” (Carlos Nhangumele, 2024).

O título, além de sugestivo, é irónico: a sua beleza reside no facto de intervenção rápida ser uma força especial para lidar com missões complicadas, de forma célere e eficaz. Naquele contexto, Azagaia reaproveitou o sentido de Força de Intervenção Rápida para criticar a brutalidade policial.

As metáforas visuais em Música de Intervenção Rápida de Azagaia

Como é já típico em Azagaia, o vídeo da música complementa significativamente a composição. Hoje, por exemplo, tocaríamos na super produção do rapper norte americano Kendrick Lamar com o vídeo da música ‘Not like us’, que é uma disstrack (tipo de música onde rappers tentam provocar e falar mal dos outros rappers num desafio) contra o Drake, outro rapper. Cada detalhe presente naquela música conta uma história diferente de uma maior história que a música não, apenas na composição, não conseguiria contar. Desde as flexões do Kendrick, o quadro virado para a parede, o palhaço no início do vídeo, são todos pontos que tecem uma maior história.

O vídeo da música auxilia a narração da composição. A complementaridade é evidente nas passagens dos agentes da F.I.R. atirando gás lacrimogéneo e outras brutalidades, dos “pais e mães” amotinados em manifestação à frente do edifício estatal e dos carros de guerra. Dessas imagens recolhidas e feitas vídeo da sua música, o artista possibilita um alto nível de compreensão da composição, o que obriga a ver a tentativa de interpretar a música como algo deveras supérfluo. O vídeo pode ser caracterizado pela seguinte frase: um exercício minimalista, mas que não perde o realismo: imagens claras e objectivas, e que retratam sem abstracções a realidade que intencionava trazer.

Além dessa objectividade aparente e uso minimalista de recursos visuais para complementar a sua mensagem, a direcção do vídeo trouxe metáforas simples e subtis, mas que podem passar despercebidos por conta da expressividade emocional que as passagens recolhidas retratam. Essas partes, na hierarquia focal, colocam-se como o assunto principal do vídeo, o que faz com que haja partes que estejam no segundo plano.

O início do vídeo com personagem inclinado na sombra de uma árvore simboliza a passividade e resignação de toda uma nação. A bebida remete-nos ao exercício de reflexão sobre uma sociedade que se verga com a ajuda do álcool. O descansar no momento da tensão, onde tudo corre mal e pessoas são agredidas, faz-nos pensar na velha passividade animal questionada por Craveirinha. O personagem ouvindo a então ministra duma rádio antiga pode reafirmar a ideia de antiguidade: a antiguidade das desculpas da ministra ou a antiguidade de quem ouve (os antigos combatentes).

As aparências do personagem não enganam: gorro, camisas, calças caqui ou de pano (impossibilitado pela visibilidade) vão-nos conferindo a idade do personagem. Geralmente, são tidas como vestimentas de velhos ou pessoas da terceira idade (talvez, simpatizando com os antigos combatentes?), o que é confirmado pela barba esbranquiçada.

A parte fulcral é a recta final do vídeo, no qual se encontra num cemitério. Esse lugar é, primeiramente, um lugar historicamente santo. Contudo, o personagem invade o recinto sem esses remorsos morais e éticos por conta do meio em sua revolta que lhe consome até a sua medula. De seguida, vê-se o personagem do vídeo um tanto agastado, sugado, prostrado (já que é velho) e apoiando-se numa bengala, um outro reforço da sua idade. Mas é só sobre a idade? Talvez seja sinal de um homem fatigado com as andanças do país e de tudo que se priva (mais uma vez, simpatia com o agastamento dos antigos combatentes?), mas sem dúvidas retrata um homem desesperado. Esse, levado por aflição, viu-se a invadir onde defuntos descansam. Aí está o enigma.

No vídeo aparecem palavras como ‘democracia’, ‘justiça’, ‘liberdade de expressão”, “governo moçambicano” e ‘direitos humanos’, que são retratados como entes queridos de Moçambique, que jazem nas campas. Pelas aparências, essas campas não recebem nenhum tratamento, nenhuma limpeza ou estruturas que signifiquem respeito para altas individualidades, ou seja, são esses marginalizados mesmo mortos. Teria algum sentido de respeitabilidade se o vídeo tivesse sido feito na praça dos heróis. Por aqui já se nota a ideia que o artista quis trazer: a marginalização desses ‘senhores’.

As metáforas visuais em Música de Intervenção Rápida de Azagaia

As campas, geralmente, carregam nomes dos mortos, para facilitar a identificação. No entanto, nem todas as campas possuem a identificação dos falecidos, porque há tantos outros mortos que não foram encontrados e/ou mostrados no vídeo.

Em Moçambique, os mortos recebem visitas, choros, venerações, ofertas (flores, água) e até pedidos quando as situações da vida pesam. O personagem no vídeo esquece o choro porque, talvez, habituou-se da morte deles ou porque a revolta e a tentativa de ressuscitar os mortos impede o descarrilar das lágrimas. Esquece de venerar e de ofertar, mas faz pedidos implícitos, em maneiras imperativas. Pede o protagonista aos mortos que ressuscitem: o megafone simboliza essa tentativa de acordar os defuntos usando a palavra/música.

Expressa-se uma luta que leva anos e décadas, o que lhe confere, naturalmente, algum cansaço e desgaste, até impaciência. Cansado de lutar até sair barba branca e andar de bengalas. Luta usando a sua palavra, sua voz, a sua música para ressuscitar os defuntos: a democracia, a justiça, os direitos humanos.

As metáforas visuais em Música de Intervenção Rápida de Azagaia

Um humano dotado de níveis mínimos de conhecimento pode afirmar que a liberdade de expressão já está em dormitórios eternos abaixo de nós, ou é, no mínimo, enclausurada. As mortes de Carlos Cardoso e João Chamussa são exemplos inequívocos de intolerância à opinião divergente, ainda nesse de 2024 o jornalista Ernesto Martinho foi ameaçado e a jornalista Sheila Wilson, da CDD, foi impedida de reportar agressões da polícia contra os antigos combatentes, que manifestavam em frente a ONU: uma ferida que nega de cicatrizar, desde Azagaia até depois da sua morte.

Apesar de morto, ainda norteia as nossas vidas o Azagaia com as suas obras. Essa música é tão actual e ainda verdadeira nessa nossa sociedade. Os antigos combatentes ainda manifestam por descontentamento com o governo moçambicano, e, nada mudou, ainda são espancados e humilhados pela polícia. O último acontecimento foi no dia 4 de Junho do corrente ano. Isso prova que a injustiça ainda está morta. As intimidações ao Ernesto Martinho e o sequestro da Sheila Wilson demonstram a morte da liberdade de expressão. A tentativa de chumbar a CAD e o Venâncio Mondlane demonstra que a democracia está a reboque, morta. O gás lacrimogéneo e chambocos contra os manifestantes nos últimos dois anos revelam muito sobre a falência da entidade ‘direitos humanos’. Isso tudo vai significar que o governo moçambicano também está morto.

Azagaia usa o Hip-Hop como um meio de resistência e revolução, lançando propostas de reflexão sobre os princípios de um Estado de direito. Por essa via, os objectos incluídos no vídeo, como campas, são metáforas que descrevem a anti-democracia e anti-injustiça, que, no caso, caracterizam o Estado moçambicano.

Referência

NHANGUMELE, Carlos. (2024). Azagaia: música de intervenção rápida; a expurgação. Meer (Acessado no dia 27 de junho, às 17 h) ou content://com.android.chrome.FileProvider/offline-cache/5550cf4d-f013-4e12-a3c5-12795db3ec39.mhtml

Azagaia (2013), [MIR – Música de Intervenção Rápida].(https://www.youtube.com/watch?v=VtO1uPqnG2Y)

https://youtu.be/H58vbez_m4E?si=Z39_Yuq92zVKOQbM

https://youtu.be/sE7YbubcHLw?si=8NA1a4u5S9d_EDou

Por Domingos Mucambe

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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