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Bulícios do Trânsito – 1

O machimbombo parte às seis horas e vinte e sete minutos, a violar assim cerca de duas horas do tempo pactuado. É uma viagem de férias, da Cidade de Maputo para a Cidade de Chimoio. Enquanto calculo a lonjura do destino em função da atmosfera cá dentro, a flexão de algumas inquisições inflamam-me os neurónios. Como…? Como hei-de tolerar a vibração de tantas línguas? Como hei-de suportar o ardor de tantos corpos? Como hei-de lidar com tanta humanidade? E se…? E se me sobrevier à alma alguma crise? E se me domar o espírito algum derrame? Não há, em meu redor, ninguém que me socorra deste incêndio. Nem a amada. Nem a mana. Nem a mamã. Nem o doutor. Nem… Ninguém! Sou apenas eu, vulnerável à arduidade de outrem. Os deuses de toda essa malta não permitam que alguém aqui resvale pelas minhas mãos para a profundidade da morte! Fremem-se-me os músculos na ebulição da cefaleia. Avassala-me a alma um pavor por viagens, que é nutrido por lacrimal ou sanguíneo combustível. Não sei ainda o que há-de ser de mim com a cefaleia e a hipotensão sujeitas ao suplício deste trânsito. Então, por circunspecção, descrevo neste Caderno de Dias os pormenores desta Via-Crúcis em que subvivo. Se eu matar ou morrer nesta viagem, este caderno sobreviva para testemunhar daqui os casos.

Eu, há dias, rasguei a pele e abri o corpo de um homem. Assei e comi o seu coração e o seu fígado na noite mais alta e vazia do meu bar predilecto no Bairro Trevo. Eu conhecia aquele homem. Tenho o seu perfil em esquemas, gráficos, figuras, desenhos, grafias,… do sétimo tomo do meu Caderno de Sangue. E tenho lá ainda tanta outra gente. Sempre soube que voltaria a ocorrer. Não é o primeiro homem que atravessa o rio da vida com o auxílio do meu indicador. Nem será o último. Eu não saberei parar, por mais que invista em modos cada vez mais inovadores de repressão da pulsão. Haverá instinto mais potente que pulsão de morte? Tentei expor à minha amada os meus casos mais imundos em função do mundo. Ela disse que não me compreendia. Sei que ela é incônscia da merda que diz. E dói-me que ela não me compreenda. Tenho agora tudo em suspensão. Os meus projectos. Os meus programas. Os meus planos para a vida e para o mundo. Só não sei suspender o amor que nutro por ela. Preciso mesmo de ajuda. E custa-me a honra admitir tal astenia. Não soube encontrar o Sr. Dunia, um amigo mendigo que diz ser médico. Tentei recorrer ao Dr. Viktor, meu último psicólogo – o menos inepto de todos com quem já lidei –, mas também não o soube alcançar. São as pessoas que me compreendem, pelo menos minimamente. E vou agora, de férias, para casa. Para a família. Os meus próprios pais não me conhecem o mínimo. Eu não estou nada bem. Eu estou todo mal. Sei que isso há-de passar. Tudo passa, afinal. As vezes por cima de mim, mas ainda assim passa.

A mândria que tenho de viver há-de me matar, segundo a língua dos meus pais. Se eu sobreviver ao revés desta viagem, farei o meu vigésimo quarto nó na linha do tempo em primeiro de Dezembro. Então a obstar, é já idoso o meu desgosto por viagens. E, ao que parece, as circunstâncias configuram-se-me para fomentar tal desânimo. Neste machimbombo, por exemplo, além disto mais aquilo, quase todos os passageiros investem algum esforço para nutrir o meu desprazer. Infestam-me todos, basta apenas que sejam partes da viagem. Desde o instante em que instalei a bunda no desconforto desta cadeira, a tosse deflagra no madala que vai agitado do meu lado esquerdo – o que usurpou à minha paz o assento com acesso à imunidade da janela. Se prendo a respiração, estoira-me os pulmões a asfixia. Se partilho com ele o oxigénio, putrefaz-se-me o pulmão sob o influxo da gripe ou da toxina do seu hálito. Eu – gênio ingênuo – isolo para mim uma porção de oxigênio na cápsula têxtil do meu capuz e sujeito-me ao lockdown na exiguidade desse universo.

O cobrador deste machimbombo é um merda. Chato p’ra caralho. Um hábil estorvo. Tem o talento trivial de fazer com que os outros não gostem dele. É exactamente o tipo de pessoa a que calha resvalar para o exício pelas minhas mãos. Eu [quase] nunca quero isso, mas acontece-me-nos, simplesmente. Urge clarificar que… Eu sou um homem bom. Sou um bom homem. Profundamente, sou bom demais para ser verdade. Sei suportar a igualdade em outrem. Consigo tolerar a diferença nos outros. Sei transigir a indiferença alheia. Eu compreendo as pessoas, embora não me importem nem me interessem. Não tenho ódio, inveja, ciúme, rancor,… por ninguém. É apenas por pulsão que uma pessoa chega a alcançar a morte pelas minhas mãos. Eu amo a humanidade. Há em mim alto fervor no intento de melhorar o mundo. Eu sou, no entanto, o meu mundo. Amo-me p’ra caralho! Algumas pessoas me acusam de egoísmo, egocentrismo, egolatria,… Eu prefiro o Dr. Viktor que me considera autopata. Convenhamos, é uma acusação muito mais chique. Enfim… Por culpa do cobrador, escapou-se-me uma ideia que estava já em vias de ser genial. Isso é grave. Gravíssimo! Ele me fracturou a linha de pensamento, em pousar sobre mim o ónus de sua gordura na sequência de um tropeção. Não sei explicar como os meus dentes se cravaram no seu pescoço. Não sei o que seria dele se o seu fedor não me repelisse. A asperidade do meu gesto desviou para mim a atenção intrépida de outros passageiros. O meu pénis no cérebro de todos eles – foda-se o que pensam!

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Por Ericson Sembuer

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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