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Recensão crítica da obra As Visistas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho

 

A literatura tem um carácter institucional que se comporta, desde logo, pelas práticas e sujeitos que suportam o fenómeno literário e o respectivo comportamento de estabilidade e de notoriedade pública. Pelo que, os prémios literários fazem parte dessa prática, pois significam um instrumento de afirmação da literatura, tanto que Vergílio Ferreira afirmou: “um prémio, para além de várias compensações, confere ao premiado um pouco de certeza sobre o que se realizou”. Toda esta concepção é trazida por Carlos Reis, professor catedrático. Desta forma, fazemos o uso da mesma, muito a propósito da obra “As Visitas do Dr. Valdez”, de autoria de João Paulo Borges Coelho, publicada na primeira edição no ano de 2004 e que veio a ser merecedora da terceira edição do prémio José Craveirinha (2005). O prémio é tido como expoente máximo da literatura moçambicana. Neste sentido, a mesma obra, veio a ser reeditada em 2010, pela Editora Ndjira, em pouco mais de 222 páginas, perfazendo, assim, a 3ª edição. Coelho é o único moçambicano, até então, a ganhar o prémio Leya (2009) através do romance histórico “O Olho de Hertzog”; em 2016, ganhou o prémio BCI e, recentemente, “arrancou” o prémio Oceanos (2022), pela célebre obra intitulada “Museu Da Revolução”. Isto, torna-o um escritor relevante para a literatura nacional. Para já, só lhe falta o prémio Camões e o Nobel de literatura.

O autor foi professor de História na mesma universidade que fizera licenciatura, Universidade Eduardo Mondlane. É doutorado em história económica e social, pela Universidade de Bradford e, um facto não menos importante que é a nomeação de Doutor Honoris Causa, pela Universidade de Aveiro, Portugal.

A guerra da luta pelo alcance da independência tinha assolado a província de Cabo Delgado, antiga cidade de Porto Amélia, hoje, Pemba. E é partir deste ponto, que Coelho, cria um narrador que oscila entre hétero e homodiegético, que nos dá a conhecer a história da família portuguesa representada pelas personagens Sá Amélia, esta que a idade já lhe tinha tomado o corpo e Sá Caetana, irmã mais nova. Eis que por conta da guerra, viram-se obrigadas a abandonar Porto Amélia e tomar como destino a cidade da Beira, Sofala. Entretanto, não podiam deixar Vicente, servo obediente e descendente de Cosme Paulino, este que, por sua vez, viria a morrer num celeiro no qual armazenava-se sacos de açúcar e, como castigo pelo roubo, foi colocado de costas para o céu. Enquanto isso, sacos de açúcar entornavam-se na sua boca e por conseguinte, a terra tomou conta de si. E como pagamento dos prejuízos, Paulino deixou o filho Vicente para que continuasse a servir às senhoras portuguesas.

Recensão crítica da obra As Visistas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho
As Visistas do Dr. Valdez, Foto de Gil Cossa

Chegado à cidade da Beira, era habitual que Sá Amélia recebesse visita do médico Dr. Valdez. Com este, ela sentia-se muito à vontade e acarinhada. Os dias tornavam-se um terror quando ele não aparecesse para as habituais consultas. Nesta senda, Dr. Valdez, como de costume, tinha de tomar o pequeno-almoço antes de sair para as consultas no hospital. Na refeição não podia faltar a manteiga amargarina. Ele sabia dos posteriores danos à saúde. No entanto, deixou-se levar pela natureza das coisas e foi por causa da amargarina que lhe anunciaria a morte. Depois deste infortúnio, Sá Amélia ficou sem as habituais visitas do seu médico. Pelo que, sempre perguntava à irmã Sá Caetana, por onde andava o Dr. Valdez. Enquanto isso, a depressão e a solidão tomavam conta da já idosa e cadeirante. Até que, Vicente, teve a ideia de tornar-se o próprio Dr. Valdez. Foi difícil, pois, o empregado era negro e tinha de aplicar uma substância para clarear a pele e parecer-se, verdadeiramente, ao Dr. Tentaiva bem conseguida (p.139). Mas como é que Sá Amélia não se apercebeu da façanha? Caro, leitor, terá de ler a obra para desmistificar isto e tantas outras coisas. Os dias de Sá Amélia, reavivaram-se. Alegria completa. Até que, aquando da proclamação da independência, Sá Amélia morre e o Vicente continua com a vida junto da mais nova patroa, Sá Caetana.

A escrita de João Paulo Borges Coelho, pelo menos neste romance e no Olho de Hertzog (2010), pressupõe um leitor informado. Aquele segundo o qual Leite (2010), classifica como alguém com competências linguísticas e semânticas capazes de lhe permitirem interpretar a obra lida. Como sugere a passagem seguinte:

  “Estalam surdas, as imprecações de Sá Caetana procurando exercer autoridade; arrastam-se as cadeiras, range a cama, cai um candeeiro. Em cima, as pancadas dos vizinhos incomodados são um contraponto que corta cerce o resto de privacidade que ainda ali havia.” (p. 33).

O romance, As Visitas do Dr. Valdez, pode ser analisado em dois prismas. O primeiro, tem a ver com o facto de a mesma ser uma representação da independência de Moçambique já o segundo, constituir o retracto dos dilemas da sociedade daquele tempo, pois, como refere Leite (2003) “Se a escrita é uma prática social, com uma função social, bem precisa, em África, herança que subjaz, parcialmente, da oratura, sugere a possibilidade de que também, o sentido seja uma construção social, caracterizada pela participação do escritor e do leitor no acontecimento do discurso”. Para tanto, Coelho faz muito bem a descrição dessa sociedade e com a intenção de assumir a responsabilidade social da literatura. O leitor, participa, também, nessa construção a partir da leitura de obras literárias, com maior enfoque para esta em análise.

Recensão crítica da obra As Visistas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho
João Paulo Borges Coelho. Foto

Para além disso, o autor traz-nos uma história que oscila naquilo a que Aristóteles classificou em dois géneros da poesia: a *tragédia e a comédia*, na medida em que, o personagem Vicente, que carrega o fardo de uma sociedade – personagem tipo -, encarna uma outra personagem, no caso, a do Dr. Valdez. Como se pode notar nas passagens seguintes:

 “No umbral estava um Dr. Valdez muito mais baixo e magro, mas meias altas de sempre. Tufos de algodão colados à face faziam as vezes de uma farta barba, uns fofos bigodes, contrastando vivamente com o negro azeviche da pele e do cabelo crespo de Vicente, cortado rente; (p.47)

– “Sá Amélia! Há quanto tempo! – retorquiu Vicente com um timbre estudado, tão grave e soando falso que Sá Caetana, escondida ainda no corredor, mal pôde conter o riso”. (p. 49). – estes excertos são exemplos cómicos trazidos para o romance pelo autor, porém nem tudo é cómico. Verifica-se ainda, uma situação trágica que se pode encontrar, a morte de Sá Amélia:

“hoje já não quero visitas, ao contrário dos outros dias. Hoje só nos queria a nós três, juntos como se fôssemos uma família. De resto já me despedi de tudo, falta apenas despedir-me de vocês. (p. 194); Nenhum som dali saiu, porém. Só um sorriso de cara, cada vez mais ténue e mais branco”. (p. 195).

          Na leitura desta obra, exige-se ao leitor para que tenha noção dos conceitos funcionais da comédia e da tragédia, que é, desde logo, a pedagógica. Afinal, na leitura de uma obra aprende-se, infalivelmente, alguma coisa. Neste sentido, a postura de Vicente faz-nos recordar da música de Assa Matusse, intitulada “Sombeco”:  […] ser pobre é exercer a criatividade; é saber viver à vontade, e, foi isso que Vicente fez: Criatividade. Daí a importância de leitura desta obra e o facto de ter ganho o prémio Craveirinha é motivo suficiente para atestar a sua proeza.

Referências Bibliográficas:

COELHO, João Paulo Borges (2010). As Visitas do Dr. Valdez. 3ª Ed. Maputo: Ndjira.

REIS, Carlos (1999). O Conhecimento Da Literatura. 2ª Ed. Coimbra: Almedina.

LEITE, Ana Mafalda (2003). Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Maputo: Imprensa Universitária.

MATUSSE, Assa (2023). Mutchangana. In. Spotify

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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