10 Excertos do livro “Naufrágio” de João Tordo
O romance “Naufrágio” de João Tordo narra a jornada de um homem à deriva, enredado em suas angústias e obrigado a enfrentar uma terrível acusação. Com sessenta anos, o renomado romancista Jaime Toledo se vê diante de diversos problemas. Há uma década sem escrever, recebe o diagnóstico de câncer e, repentinamente, é envolvido em um escândalo que o lança para o abismo. Sem carreira, dinheiro e casa, seus livros são banidos pela editora e acabam empoeirados nos armazéns. Nesse momento, ele toma uma decisão drástica: abandonar tudo e mudar-se para um barco decrépito ancorado nas docas de Lisboa.
No pequeno e mágico Narcisse, na companhia de uma velha guitarra e do cão Sozinho, Jaime busca dar sentido à sua vida e reconciliar-se com o passado. Ele enfrenta os desafios das relações conturbadas com as mulheres, o abandono da escrita e a culpa que o atormenta. Porém, a aparição de uma figura do passado transforma tudo, desviando a narrativa para um rumo inesperado. Agora, cabe a Jaime decidir se esse naufrágio é o fim ou um caminho para algo novo.
“Naufrágio” é um corajoso romance que aborda o amor e as relações entre os sexos, reflectindo sobre a memória e a culpa, bem como as fronteiras pessoais, sociais e morais. Por meio de Jaime Toledo, João Tordo delineia o perfil de um homem em busca de redenção em um mundo onde o julgamento é rápido e a reflexão é escassa, onde condenar é mais fácil do que estender a mão. A história nos leva a questionar as complexidades da vida e a importância do perdão e da renovação pessoal.
Ao longo da leitura seleccionamos 10 excertos impactantes deste livro. Confira-os abaixo:
- Habituados a pensar na vida e na morte como entidades radicais e opostas, era fácil julgarmos que o reino dos Céus chegaria depois da vida, mas, na verdade, talvez ele acontecesse aqui mesmo, e não fosse um lugar, mas um estado de espírito.
- Acredito que o que procuramos nos livros não é a explicação do mundo, nem essa entidade ilusória chamada «verdade», mas alguém que partilhe do nosso sofrimento, que nos conte a nossa própria história.
- Secretamente, julgamos que o nosso sofrimento é único, até que, um dia, alguém nos diz: também sofro como tu. Muitas vezes, essa primeira mensagem de esperança surge num livro, e a literatura transforma-se, assim, numa ponte ou ligação invisível.
- O sol encontrara um espaço por entre as nuvens e brilhava agora sobre o cais, o seu reflexo nos vidros e nas amuradas dos barcos. Tive de semicerrar os olhos para encarar o homem, que era da largura de um armário. O cachorro lambeu-me a mão direita, a língua áspera como veludo coçado.
- O cachorro farejava tudo — como se ali tivesse chegado agora, pela primeira vez —, cada recanto e cada centímetro do convés. Pensei que ser cão devia ser uma experiência extraordinária: não ter passado nem futuro, amar todas as coisas, em todos os momentos, com a mesma exuberância inaugural.
- Envelhecer não é um número, é um estado de espírito, há pessoas que chegam aos sessenta e são umas autênticas crianças, e outras que, aos vinte, já estão acabadas, não me parece que tenha a ver com a decadência do corpo. Então é o quê? Não sei, se calhar, é a decadência da esperança.
- No reino animal, não existe angústia nem dúvida; apenas as leis da Natureza e o momento presente, portanto, tudo está perdoado de antemão. No reino animal, também não existe amor — ou, pelo menos, aquilo a que chamamos «amor», essa entidade abstracta que invade as nossas imaginações, que surge, por vezes, do desespero ou do encontro improvável das almas feridas. É algo intuído, espiritual: os animais copulam, os humanos fazem amor; os cães andam em matilha, nós vivemos juntos, em famílias — por causa do amor.
- A Morte devora tudo, pensei, é como uma baleia de bocarra aberta, a viajar por um oceano de tempo; a memória, a imaginação, a palavra, a obra são os pilares de um templo proscrito — o templo que o Homem, frágil e perecível, erige como marca da sua passagem por um Universo incompreensível.
- A tristeza é mesmo assim, se não vem hoje, virá amanhã, se ainda não chegou, há-de chegar mais tarde. Pois, não se consegue fugir-lhe.
- À semelhança do mar, os humanos nascem e renascem sucessivamente, não somos criaturas já feitas e definitivas, existe em nós um vazio à espera de ser tomado de assalto pelo que nunca esperámos, somos areia imaginando-se rocha.
Titulo: Naufrágio
Autor: João Tordo
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 320