Névoa na Sala, o mais recente de Mélio Tinga, conduz-nos por um labirinto de emoções, onde três personagens lidam com os fantasmas do passado em um cenário que mistura guerra e várias outros fenómenos que apoquentam o homem enquanto um ser biopsicossociocultural.
Usando a técnica da corrente de consciência, o autor dá voz às experiências traumáticas e interiores de cada personagem, revelando marcas profundas deixadas pela guerra e por outras fenómenos sociais.
Este post reúne 15 excertos que capturam um pouco da essência deste romance.
- […] a imaginação tem ainda mais força do que os olhos.
- Penso constantemente na conveniência da morte, na morte humana que é a que mais me dói, e só penso. Substituição inevitável da espécie. Transição para um universo incógnito, de onde nunca haveremos de regressar para dar testemunho. Ou apagão, todo o fim na vida, nada mais, nenhuma vaidade, nenhum inferno, nenhum paraíso.
- Segurei na mão dela com medo de cair. De cair para um lugar inexistente. Não se cai para depois da terra. O medo de tombar, vivo. Andava a perseguir-me a sensação de que haveria de tombar, para algum lugar oco, para o som misterioso da noite, para as mãos invisíveis do universo, para o mesmo lugar onde Analiza caíra. Segurei-me na mão de Lili. Disse que a amava, acima dos céus e da terra.
– Sabes o que há depois dos céus – ela, singular.
– Depois dos céus existe o tempo infinito e o vazio.
– E o teu amor está acima dos céus…
– E da terra.
– Do tempo infinito e do vazio…
- O amor cura-nos, de algum modo, pensava. O amor tem sempre dois caminhos; num, tem a força da cura para os tormentos da vida, noutro, o amor tem o vigor rancoroso das doenças cardíacas, adoece o corpo, rói e destrói os ossos, até que ao fim de tudo, sejamos apenas massa branca, poeira que ascende ao céu com a pouca força do vento brando.
- A beleza nunca é fútil, Lili. A beleza é o idioma que nos alimenta.
- – O que é uma amiga?
– É aquela pessoa que nos olha e sorri, nos ajuda a carregar a dor que temos no peito.
– E o que mais Lili, diz o que mais?
– E nos abraça quando precisamos.
– Mesmo quando fedemos?
- Descobre-se o amor nas coisas ínfimas, em seres excêntricos, que se comportam de um modo que eles mesmos nunca sabem explicar.
- […] não se queima a casa toda por causa de uma cobra.
- A dor do amor corre na mesma pista e com a mesma violência que a dor do luto.
- E a vida, a vida real não precisa ser explicada em laboratórios, a vida real não precisa de grandes formulações teóricas Como pode ser explicada a origem de uma coisa tão pequena e tão vital como um batimento cardíaco?
- Aprecio a poesia como aprecio as flores que brotam nas manhãs de Inverno. Sei que olhas para as flores como olhas para os astros no céu, e confesso, nunca entendi. Sentar-se no corredor, olhar para o céu e pensar que tudo é aquilo, quando não é, quando é um engano.
- O frio é uma invenção do corpo para que haja contradição. A vida precisa de sentidos opostos; homem – mulher, vida – morte, amor – ódio, esquerda – direita, cima – baixo, magro – gordo. A vida é construída nessa lógica eternamente grudada na dualidade, o sentido dela atravessa todos caminhos e se retém, sempre, em dois, o primeiro número par.
- […] a felicidade é uma forma de luta contra qualquer coisa que está sempre contra.
- […] imaginação funciona melhor quando os olhos não podem ver o que está fora, por isso que quando se faz sexo fecha-se os olhos, para alimentar a imaginação e dar gozo ao corpo, o sexo é, por uma actividade imaginativa.
- A lua, nesta noite, era um papel recortado por dedos, irregular e trémulo. Trémulo estava também o meu corpo, em oração; para que o tempo passasse depressa e para que o médico tivesse notado que o tratamento surtira efeito e já estava na hora de ir-me embora daquele lugar.
Sobre Mélio Tinga
MÉLIO TINGA escritor de ficção e designer de comunicação. É autor de oito livros, entre os quais Marizza, sua estreia no romance, obra vencedora do Prémio Literário Imprensa-Nacional Casa da Moeda/ Eugénio Lisboa 2020. Para além de Moçambique, seus livros estão também publicados em Portugal e no Brasil.
Foi vencedor da Residência Literária em Lisboa 2023 e distinguido com o Prémio das Indústrias Culturais e Criativas (PREICC) 2023, pelo Ministério da Cultura e Turismo. Venceu o BLOG4DEV 2021 do Banco Mundial e foi finalista do Prémio Literário 10 de Novembro 2019. Recentemente foi selecionado para bolsa “AléVini”, um programa para apoiar a mobilidade profissional, liderado pela Comissão do Oceano Índico e financiado pela Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD).
É co-fundador e director executivo da Catalogus e de OitentaNoventa – Projecto de ligação entre gerações literárias e é Vice-Presidente da ACUP – Associação Cultural da Universidade Pedagógica. É licenciado em Educação Visual, pós-graduado em Branding.