Quinta-feira, Novembro 21

As grandes coisas ficam para os grandes, os abismos para os profundos.” Friedrich Nietzsche

Lillian Benny, fotógrafa ainda no começo da carreira, tem já o seu nome distribuído pelas artérias da cidade, no país, e até internacionalmente. Dentro da cidade, a sua última exposição foi no UpCycles, no dia 6 de abril de 2024, na fortaleza de Maputo, onde apresentou aos seus poucos fãs e admiradores da arte uma obra áudio visual, desafiando-se a si mesma a sair do seu lugar de conforto, que é a fotografia. Fotografia. A fotografia “De nobis ipsi silemus”, de 2023, faz parte duma série de Quinze fotos denominada ‘where do I land’, com o conceito ‘Loss’. Ela é, ao mesmo tempo, mares rasos, cristalinos e convidativos, e também mares profundos de sentimentos e emoções, com significados, por mais que seja pessoal, ressoa entre corações de quem a vê. O quão profundo é a profundidade da alma?

A cor preta que predomina na foto e a pouca luz indicam uma arte que não se predispõe de muitos detalhes e nuances, o que facilita a identificação de um foco: as duas mãos. Essas que, por sua vez, simbolizam a alguém do ébano. Por inclinações pessoais na sua arte, Lillian Benny possivelmente fez um auto-retrato, então são mãos femininas, representando uma mulher, ou mesmo a autora, em caso específico e particular.

“De nobis ipsi silemus”. A expressão latina sugere, ainda mais, de formas desentendidas e em jeitos insustentavelmente meigos que se trata de algo mais ‘espiritual’, algo de dentro, do coração abstracto e muito íntimo. O latim, historicamente, sempre foi tido como uma língua religiosa, a língua de conexão com Deus, por isso até hoje, em cinemas e literatura, retracta-se dessa forma. A língua estrangeira e morta: a intangibilidade da língua vai conferindo, de certos modos, uma certa profundidade ao significado da fotografia. O que a expressão significa? Talvez tire a magia que confere à obra. De facto, o significado literal ‘sobre nós, nos silenciamos’ sugere humildade de quem não aplaude os seus feitos, e retira a profundidade de uma procura interior que a fotografia retracta.

A fotografia é uma simbólica mescla de auto-retrato e fotografia conceitual, duas formas de correntes fotográficas: “Autofotografia onírica”. Essa expressão sugere uma fusão entre a introspecção dos auto-retratos e a imaginação criativa da fotografia conceitual, criando imagens que são ao mesmo tempo pessoais e profundamente simbólicas. O resultado disso enamora a definição de Enria Gaston (2021), “A fotografia é uma arte que busca reinterpretar a realidade e transformá-la em imagens”.

Num olhar com pálpebras esbranquiçadas, desatentas, a foto é apenas atraente e com uma tonalidade quase monótona: preto e mãos pretas. Essa escolha de um fundo preto, sombras pretas, e mãos pretas rompe transversalmente com ideias e práticas tradicionais: a procura da harmonia fotográfica no contraste. Contudo, artisticamente, a falta de nitidez causada por uso de cores com ínfimo contraste não causam nenhum mal-estar de harmonia e simetrias na fotografia. Quem visualiza a foto sente um bem-estar, um afinar perfeito de pianos e violas: sente-se a sinfonia através da foto.

Duas mãos pretas. Um fundo preto. Sombras pretas. Cada elemento e cada orifício fotográfico estende ainda mais o sentimento do visualizador da fotografia: E como se enxerga o sótão? Que sótão? O nosso sótão? Nós, humanos, somos casas. Com salas de estar, cozinhas, janelas, e um lugar onde ninguém entra, ninguém pisa, ninguém conhece. Um lugar escuro e horrendo: o fundo da nossa alma.

As mãos, em figuras de linguagens de uso diário, ora significam “ajuda” ora “arranjos”. Dê-me uma mãozinha aqui. Dá uma mãozinha no seu carro. Elas são um simbolismo para algo mais profundo do que “uma pessoa negra”, provavelmente “uma mulher negra”, ou talvez “representatividade negra” no mundo das artes. Elas podem simbolizar arranjo de algo num mundo difícil de lidar: a alma. As palmas das mãos fechadas para o fundo negro, dando-nos as costas, gritam, em nossos olhos, para ‘alguém’ que adentra nessa luta contra si mesmo sozinha, não abrindo a mão como sinal de, em psicologias comportamentais, recebimento (talvez de ajuda). Entra nessa luta com as duas mãos.

O fundo negro, as sombras negras representam a sótão e as sombras “fantasmagóricas” que a compõem. O quão profundo é a profundidade da alma? Mãos tentando arranjar algo, na alma, no seu lado escuro, povoado por sombras, fantasmas negras. Talvez seja um trauma passado, de infância ou recente. Contudo, a escuridão reflecte a incerteza e o caos que é a nossa alma, as nossas profundidades. Nunca se chega a tactear com total luz. Nos fundos de nós, só há escuridão, ou pelo menos no da autora. Isso é o que sentimos com a fotografia: uma procura incessante dum solo firme em mundo caótico, onde tudo é subtil e movediço.

“De nobis ipsi silemus”, em suma, é uma fotografia de uma artista contemporânea, com influências dos nossos tempos: a dita era da psicologia. Era essa em que se vislumbra o Homem como um ser complexo, pessoa que tem muitos humanos dentro dele, ou que possui demónios e anjos na sua cabeça. Essa fotografia é, de certa forma, um retracto do ser humano que se situa no século XXI: ambíguo e contraditório. Desconhece a si mesmo, e reconhece a sua profundidade. Apesar de tudo, é um humano que tem a ciência de que a maior luta e conflito que um ser humano pode ter é consigo mesmo. A Lillian Benny dá-nos essa possibilidade com a sua fotografia.

Por Domingos Mucambe

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FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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