O formador Paulo era um homem cheio de estilo; um estilo adquirido no estrangeiro. Não se sabe a pura verdade, mas parece que foi estudar para a Cuba na década de 60. Ora foram ares adquiridos nas terras lusas quando foi amestrar-se em psicopedagogia, ou estilo britânico adquirido quando frequentava o ensino secundário em imitação a um missionário britânico, de orelhas desproporcionais ao tamanho da sua cabeça, de cabelos rentes.

O formador Paulo era um homem cheio de estilo; as calças arrepanhadas até aos sovacos, e bem apertadas pelo cinto preto de pele de crocodilo que engraxava todos os dias; uns sapatos pretos de franjas; e óculos de correcção pousados no cano do nariz. Diga-se: aqueles óculos de lentes graúdas, usava-os para corrigir os corredores do instituto e a rua do instituto, que ele confundia com a pista de avionetas militares, pois o formador Paulo, tinha um outro par de óculos de leitura que, usava para riscar as palavras mal escritas, acentuar e borrar ou meter a vírgula em falta entre as palavras nas avaliações dos seus formandos.

Os formandos gostavam de ver o formador Paulo a andar. Sempre que o viam pelos corredores do pátio do instituto de formação gritavam até estremecerem as árvores que arboresciam o instituto: lá vem a avioneta.

– Parece uma avioneta militar… – diziam os formandos em jeito de troça.

Cheio de estilo, o formador Paulo fazia-se à rua do instituto pontualmente às doze e trinta minutos, os braços em arcos como uma avioneta a sair do aeroporto, e na rua parecia uma avioneta prestes a decolar, mas nunca chegava a tal acto. O formador Paulo confundia o muro do instituto com o aeroporto. Ou ele se confundia com uma avioneta pelos corredores do instituto; talvez tivesse algum dia o sonho de ser uma avioneta. Dirigia-se à barraca da dona Maida – uma mulher gorda, de trajes desbotadas; blusas de golas esticadas, sem cores e cheirando a fumo e, por vezes, deixava os seios escaparem do sutiã quando se inclinava para mexer o caldo de amendoim, e uma capulana parda – e arrastava a cadeira plástica e se sentava à espera de prato de almoço fumegante.

O formador Paulo arrancava os óculos da cara e pousava-os sobre a mesa, e pedia uma água mineral, enquanto a dona Maida servia o arroz e o frango preparado a amendoim. O formador Paulo ocupava uma mesa de quatro cadeiras sozinho. Sempre que ele chegava à barraca da dona Maida, os clientes andavam distantes daquele estabelecimento.

O formador Paulo não conseguia comer com óculos de vista no rosto; reclamava que a fumaça do arroz borrava as lentes; por isso, sempre que chegava à barraca da dona Maida, arrancava os óculos de correção do rosto e comia com o rosto nu. Era no único momento que se podia ver o formador Paulo de cara nua. Depois do almoço, às treze horas em ponto, o formador Paulo regressava ao instituto com a barriga mais proeminente como peito de galinha, os braços em arcos como asas de avioneta.

O formador Paulo era uma avioneta que não decolava da rua do instituto de formação de professores. De segunda à sexta-feira, o formador Paulo era visto pela rua no pequeno mercado a destrinçar um frango a amendoim e arroz fumegante na barraca da dona Maida. Foi lá que, por alguma ventura, o conheci; e o seu estilo escangalhado chamou-me atenção. Foi em plena tarde de um dia útil da semana, fiquei pela berma da rua a desfiar uma conversa fiada com um amigo meu que jurara de pés juntos que eu tinha um sósia, porém era um pedreiro, e o formador Paulo surgiu na rua como uma avioneta que não decolava. Volvidos trinta minutos, tornei a ver o formador Paulo ainda a tentar decolar da rua, e não conseguia. E sumiu do portão do instituto. Já não me lembro do que teria comentado na altura, se não era isso, andava lá perto, mas ficamos em gargalhadas.

– Um personagem para um bom livro, este – indiquei com o rabo do olho – fosse possível carregá-lo assim como ele está para o livro, seria mil e uma maravilhas – devo ter comentado algo parecido.

Mas não foi pelo que havia dito que nos pusemos às gargalhadas, foi por meu amigo ter dito: – ali o tens, carregue-o para os teus devaneios.

E por um par de tardes, não sei pela tentativa de um dia o descrever para alguma narrativa, tal qual tento agora o fazer, passei a observar entre as doze e trinta minutos às treze horas em ponto, o formador Paulo a espalhar o seu estilo antiquado pela rua do instituto.

É verdade, lembrei-me agora – o meu professor de francês, era um tipo assim, um congolês de estilo também escangalhado; os braços arqueados, e as calças repuxadas até aos sovacos; a braguilha descia da altura do peito até abaixo da cintura. O formador Paulo era um homem cheio de estilo; na rua parecia uma avioneta prestes a decolar, mas nunca chegava a tal acto.

Por Alerto Bia

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FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

1 comentário

  1. Baptista Américo on

    Belíssima crónica. Que se diga: quantos formadores encontramos nos nossos institutos de formação, nas nossas escolas…hein? Quantos? Muitos. Cada Paulo e os seus estilos. Estes mais se parecia com uma avioneta. Outros…com seus estilos.

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