Quinta-feira, Novembro 21

O futuro é uma coisa. Deixa de ser, quando acreditamos: faz conta a paz, só existe quando a praticamos.

* * * * * *

O dia já se hospedara. É contemplável a firmeza naqueles passos. O velho pisa a terra, como se nunca antes houvesse chão para tanta pisadela. O caminhar, nem digo, há imensa  lentidão que até dá desgosto. A sua locomoção, outrora, é interrompida pelo tempo. Caminha mais para o passado que para o futuro, e nessa caminhada, perde-se num agradável presente. Tudo isso chega-me aos olhos, quando ele sempre regressa  das suas sapatalherices. Contudo, se sapatea tanto que até inventara um ditado: não são os sapatos que ando a coser, mas sim os pés de um passado ansiando um futuro.

A noite  vai em passos lentos pedindo licenças com as suas escurecices.  Vai-se aconchegado nas casas carentes de luminosidade. A nós a noite perde o seu poder num simples acender das velas brancas acompanhadas de estórias antigas, que ganham vida na boca de quem as conta. E é nos lábios de meu velho Resistêncio Zinho,  que elas voltam a renascer. Nesta noite, a nossa mãe veio nos convocar a uma reunião, dessas reuniões familiares. Na verdade ela sempre fizera isso e, quando nos convoca, diz:

— Venham, o vosso pai tem um sonho para nós!

Corríamos. A minha mãe tem um problema, ela confunde os verbos. É conto, e não sonho. E nós, só sorrimos para agradar  as suas confundices. Nestes instantes, apressámo-nos como quem pudesse ganhar um prêmio. E ninguém gosta de perder esse início de mais um “sonho”. E  sempre é o meu irmãozinho Ivanito,  que se chega cedo às esteiras e aconchega as suas finas nádegas. Depois, eu, bambolento em demasia, como quem quisesse atrasar o tempo. Por isso, a mãe anucia a reunião uns minutos antes do seu início.  E quando me chego, a comida já fica posta nos pratos. Faz-se uma minúscula roda para ouvir o tal sonho. A família é demasiadamente pequena para enrolar  a solidão. Mas o velho Resistêncio Zinho, já providenciara mais um membro na família, e é o assunto que se fará sentir ao longo da refeição:

— Resistêncio, não vai começar com o sonho? — pergunta a esposa

Espera, mulher, espera. Primeiro, dá-me essa Ntsima aí. Quero ganhar forças — retorquia, arrastando a panela de xima mais próxima dele.

É nesses instantes, que o nome da minha mãe ganha importância. Paciêncinha. Apelidaram-na esse nome por esperar tanto por um marido. A minha mãe foi dessas que se casara por encomenda. De facto, não havia tempo para tanta escolha.  Os avizinhados se segredavam em infinitas fofoquices: ela não se casou. Ela foi casada.  E ficavam assim, como sempre, nos murmúrios.

Resistêncio, os miúdos estão à espera.  Não vai começar? — inquiria a esposa.

Resistêncio, bambolento de nascença, se demorava um pouco com as palavras.

Já já começo:— calou-se por uns segundos organizando as falas certas para aquela sentença: —Sabem, esse filho que vossa mãe espera  no ventre, há-de ser chamada Pazminha!

Nem eu, nem a dona do ventre oferecemos recusas. Pazminha? Nome demasiado pequeno, para um tanto imenso siginificado. Nesses instantes, permanecemos perplexos e boquiabertos, sem nenhuma resistência. Naquele um tanto silêncio, Paciêncinha, inquiria:

        — E porquê  tanta decisão, Resistêncio?

O homem, encaixado no tempo, foi se explicando voz grave e seca:  há muito que o tempo não se encaminhava na vida de alguns. Aos poucos, os homens foram perdendo a liberdade, faz conta verbo sem complemento. Às vezes, e vezes sem conta, os homens iam calculando as suas sobrevivências que as suas existências. Uns, ganhavam o privilégio de nunca existirem. Alguns, nem digo, nunca existiram: Resistêncio, sem fôlego, afastou a voz para um canto mais suave e disse: hoje, temos uns direitos, e o meu é de privilégiar os que nunca ganharam privilégio. Pazminha, é em  nome dos inprivilegiados do tempo. Resistêncio, de quanto em quanto, vai engolindo a bola de xima e nem dá conta que a mamã expulsa um minúsculo sorriso e vai ficando orgulhosa do marido. Em seguida ela diz:

Eu sabia que esse teu sonho, dessa vez, seria bom..

Os meus sonhos sempre foram bons, mulher! Lembra quando eu disse ter paz, é ter direito à liberdade?

— Sim, e sempre soube disso.

— Que bom. Mais uma coisinha, que você deve lembrar, Paciêncinha! O futuro é uma coisa. Deixa de ser quando acreditamos. Faz conta a paz, só existe quando a praticamos. Entendeu?

Paciêncinha, obediente de costume, só abana a cabeça em jeito de concordância. Feito verbo e sujeito. O jantar vai ganhando aos poucos um desfecho. E já sabíamos, quando o pai parasse de comer e cessasse a voz, era o sono ganhando dimensão no seu corpo.

O vosso pai já está a dormir.— adivinhava a mamã.

Mas assim, na esteira? Vamos levá-lo para cama.— retorqui

Não. — respondeu Resistêncio, em infinitas urgências:—  deixem-me aqui. Há muito que procuro esse descanso. Vão vocês dormir e me deixem aqui.

E eu me recolhia direto à cama, pensativo e apressativo. Enquanto caminho vou decifrando a cada palavra que o velho expulsou durante a refeição. E em contrapartida lembro-me das falas do meu tio, um ex-combatente da guerra, que diziam:  a paz é uma pluralidade e nunca uma singularidade. Faz conta a poligamia, nunca se faz sozinho. E sorria em jeito de felicidade. Entre esses pensamentos à solta, adormeço…

Por Gaspar A. T. Pagarache

(in-antologia, paz e reconciliação: Fundza editores, 2023)

E-mail: gasparpagarache@gmail.com

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FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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