“- Chefe, quero matar uma pessoa. Deixa-me escolher”: – Fala de um bandido miúdo.

“ – Como é possível uma criança ser uma assassina? Tão friamente falou que não duvidei que o fizesse” – Fala de uma mãe horrorizada diante de um menino com desejos sanguinários.

Lina Júlia Francisco Magaia viveu entre os anos 1945 a 2011. Escritora e política moçambicana, vivenciou o período da luta pela independência de Moçambique e a trágica Guerra Civil. Seu livro “Dumba Nengue – Histórias Trágicas do Banditismo I” foi publicado a Janeiro de 1987 pela Imprensa Nacional, três meses após a morte do Presidente Samora Machel. “Dumba Nengue” é um recorte aterrorizante dos descalabros perpetrados por grupos armados não identificados, no período da Guerra Civil (1976-1992), mas que, conforme aponta a autora, eram pertencentes a RENAMO.

As histórias contadas por Lina Magaia, em cada um dos textos, são arrepiantes, transmitidas através de um discurso notavelmente catártico, como posteriormente evidenciaremos. A palavra catarse significa purgação ou purificação. Na antiga medicina, essa purificação poderia ser feita por vômito, evacuação de fezes, urina e suor, bem como através de sangria. É daí que deriva o vocábulo purgante, medicamento utilizado para limpeza interior ou desintoxicação do organismo – purgante = aquilo que purga, que purifica, que limpa (Queiroz, 2013).

Na obra intitulada Poética (1993, p. 37), Aristóteles (384-322 a.C.) apresenta a sua noção de catarse. Segundo o filósofo, a tragédia (um dos géneros entre os 3 principais de Aristóteles) descreve em forma dramática, não-narrativa, incidentes que suscitam piedade e temor; desse modo, consegue-se a catarse (purificação) dessas paixões. Em outras palavras, suscitando o terror e a piedade, a tragédia tem por efeito a purificação dessas emoções.

Logo no texto introdutório, Lina adverte:  “E ouvi dizer que em Moçambique há uma guerra civil. Guerra civil!?…O que é uma guerra civil? As guerras, civis ou não, fazem-se entre contingentes armados. Não é isto o que se passa em Moçambique. Em Moçambique não há guerra civil. Em Moçambique há um genocídio praticado por homens armados contra populações indefesas” (Magaia, 1987, p. 09).

E é pelo descalabro perpetrado sobre a população indefesa que os textos, curtos e assertivos, de Lina Magaia, vão percorrer. Os títulos reflectem o terror: “pilaram-lhes as cabeças como se fossem amendoim”; “Um jovem assassino”; “Mataram o marido da Bertana como se matam os cabritos”; “Foram doze os pilados naquela noite”, por aí em diante.

Na perspectiva aristotélica, são dois os momentos que, quando concretizados, realizam a catarse: (i) suscitar sentimentos de terror e piedade e (ii) causar a purificação das emoções.

“Dumba nengue” revela um discurso catártico, à medida que (i) a autora vai narrando práticas acima da média da normalidade humana, i.e, actos que a sociologia consideraria patológicos, a criminologia consideraria crimes, a religião consideraria pecados capitais, a História consideraria massacres. Como se conta em “Dumba nengue”, a história do cunhado que é obrigado a cortar a cabeça do marido da irmã, diante dos seus filhos; mas quando se recusa a fazê-lo, um dos bandidos armados corta à metade a cabeça do desafortunado, deixando-a pendular no pescoço, para que voltassem a obrigar o cunhado a terminar o serviço em gesto de benevolência, e este finalmente obedece. Isto gera sentimentos de terror e piedade. A história da menininha de oito anos, que é usada como exemplo de qual era o destino das demais mulheres que acabavam de ser sequestradas; ela é despida em público pelo raptor, que tenta penetrar a vagina, pequena como a menina, mas sem sucesso. O pé era do tamanho quarenta. O sapatinho era do tamanha vinte. O raptor segurou numa navalha e aumentou o tamanho da vagina da menina com um rasgão a sangue frio. Penetrou-a e a menininha, de seguida, desfaleceu. Isto causa sentimentos de terror e piedade, assim como as demais narrativas ao longo da obra.

Por outro lado, ao fim de cada leitura em Dumba Nengue, as histórias (ii) causam a purificação das emoções. O leitor experimenta a sensação de libertação, de redescoberta sobre quem ele é, e, quiçá, de humanismo, sobre como ele deve ser e estar com as outras pessoas. Confesso que experimentei, igualmente, uma sensação de benevolência e gratidão, no sentido de reconhecer os meus predecessores em relação ao passado cruel que experimentaram e agradecer pela luta que foi travada contra os bandidos armados para a erradicação dessas barbáries. É um livro que o jovem moçambicano contemporâneo deve ler. Dionísio Bahule conseguiu, em conversa oficinal do Clube de Leitura de Quelimane com o Professor Francisco Noa, extrair o seguinte trecho, ao que tudo indica, retirado da obra “Nação e narrativa pós-colonial volume II: Angola e Moçambique” de Pires Laranjeira: “as vozes que falam de verdade é um pouco isto: um regresso ao passado colonial para tentar trazer para as gerações que não tiveram a possibilidade de viver naquela altura”. Portanto, a catarse é um instrumento poderoso de auto-conhecimento e auto-respeito.

No início deste artigo, destaquei a fala de uma mãe horrorizada com a atitude de um menino bandido [descrição de Lina Magaia]. A senhora fora sequestrada e o seu bebé não parava de chorar. O menino bandido reagiu para o chefe: Esta criança está a fazer muito barulho. Posso matá-la?

Por esta razão, a mãe pergunta-se: Como é possível uma criança ser uma assassina? Ou seja, o assassino dentro nós, de onde surge? Bem, Aristóteles diria que as pessoas são o que são através da mimeses (do greg. mímesis = imitação), todo o seu modo de ser e de estar resulta da imitação de tudo o que absorve no seu meio. Noam Chomsky acrescentaria que, muito para além da imitação, a partir de determinado momento, as pessoas também começam a inovar, a criar, a partir da plataforma de imitação. Ou seja, tendo imitado e absorvido, o ser humano passa, naturalmente, para um estágio da invenção (Chomsky, 1957).

Ambas as teorias encontram fundamentos na teoria psicanalítica pós-freudiana, chamada Abordagem psicodinâmica. Segundo Gorgati et al. (2002), a abordagem psicodinâmica está fundamentada nos princípios da interacção entre as instâncias psíquicas do indivíduo com as condições ambientais que permitem o desenvolvimento, a reestruturação e a reorganização da personalidade. Ou seja, a teoria sustenta que a sua mente e o seu comportamento influenciam e são influenciados pelo ambiente em que o sujeito coabita. Influenciamos e somos influenciados pelo ambiente em que estamos inseridos.

Assim, pode-se assumir que os actos bárbaros praticados pelos bandidos armados, crianças ou adultos, nesta obra de Lina Magaia, e por metonímia, pelos bandidos do nosso mundo, são resultados de uma imitação, com certa dose de inovação, de criatividade.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. 2. ed. São Paulo: ArsPoetica, 1993.

Chomsky, N. (1957). Sintactic Structures. 1ª ed: Mouton & Co, s.l

Gortati et al. (2002). Abordagem psicodinâmica no tratamento dos transtornos alimentares. Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo: São Paulo.

Magaia, L. (1987). Dumba Nengue – Histórias Trágicas do Banditismo I. 1ª ed, Cadernos Tempo: Maputo.

Queiroz, A. (2013). Sobre O Conceito De Catarse Na Poética De Aristóteles. Centro Universitário CESMAC, Alagoas: Brasil.

Por Gerson A. S. Pagarache

gersonantonio.p@yahoo.com

Representação da Infância em “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu

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FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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