Modernidade Liquida – Capítulo 3 – Tempo/Espaço – Resumo
Modernidade Líquida – CAPITULO 4: TRABALHO – Resumo
Na modernidade sólida, era considerado trabalho aquilo que iria ajudar a construir o futuro. Portanto, as bases do futuro seriam praticamente o produto de intenso trabalho feito no presente, a quem é confiado o progresso, pois este, por sua vez é uma maneira de entender que o presente é capaz de criar o futuro.
Quando se discute em torno do progresso, há duas ideias cruciais que devem ser trazidas à superfície: a crença de que nós vivemos em linha com o tempo e não estamos atrasados; e a concepção de que somente nós podemos fazer algo acontecer, a história está em nossas mãos.
A ligação do progresso com a autoconfiança, segundo Zygmunt Bauman, é direta. Nestes termos, fica claro a dissolução da ideia de progresso na dita pós-modernidade, pois a fé no progresso exige uma autoconfiança coletiva impossível, exterminada pelos desejos egoístas do indivíduo padrão do capitalismo pesado. Não há uma clara agência que pretenda mover o mundo para frente, isso porque não se sabe exatamente quem pode fazer algo efetivo para mudar o mundo para melhor. A queda do discurso de Joshua, o discurso que costumava dar-nos o modelo de ver o mundo e sua gestão baseada na centralização dos recursos e das decisões, como já pontuado anteriormente, deu lugar à hegemonia do discurso do Gênesis, em que o caos é a regra fundamental, amparado pela própria privatização do controle da vida promovido na modernidade líquida.
O ponto é que elementos sólidos e vistos como inabaláveis, como o modelo de fábrica fordista ou os Estados soberanos, perderam o controle e não são mais capazes de administrar e organizar o mundo. Para além da possibilidade de fazer acontecer, há também a questão sobre o que vai acontecer: Bauman diz que a dúvida também está na probabilidade dos projetos sociais serem mesmo capazes de transformar o mundo num lugar mais feliz, já que as experiências no século XX demonstram que qualquer projeto tem elementos de alívio e de intensificação da tristeza, assim como de castração e reprodução da felicidade. A noção de que um corpo coletivo poderia conseguir a felicidade geral a partir de dedicação mútua não cabe mais nos planos do indivíduo atual. Bauman afirma que
Se, no entanto, a idéia de progresso em sua encarnação presente parece tão pouco familiar que chegamos a nos perguntar se ainda mantemos, é porque o progresso, como tantos outros parâmetros da vida moderna, está agora “individualizado”; mais precisamente – desregulado e privatizado. Está agora desregulado – porque as ofertas de “elevar de nível” as realidades presentes são muitas e diversas e porque a questão “uma novidade particular significa de fato um aperfeiçoamento?” foi deixada à livre competição antes e depois de sua introdução.[2]
O aperfeiçoamento não é mais uma questão coletiva, não é mais pensado como parte de um projeto que visa aumentar os níveis de qualidade para a vida, o aperfeiçoamento é agora parte das escolhas de homens e mulheres individuais que deverão, às suas custas, usar seu juízo, seu recursos, seu próprio tempo e dinheiro, para satisfazer-se eternamente, já que não há referência de objetivo a ser alcançado. A tendência é que surjam condições de existência individualizadas, atomizadas, que se sustentam diretamente no indivíduo, não mais na coletividade.
O trabalho, por sua vez, condição a priori do aperfeiçoamento, foi considerado durante a modernidade como seu principal valor, entre outros motivos, por sua capacidade de “dar forma ao informe e duração ao transitório”[3]. Esta habilidade particular deu ao trabalho o papel de colonizar o futuro, de fazer do caos algo previsível. Seria o trabalho aquilo que aumenta a riqueza das nações e faz do humano dono de sua vida.
“O ‘trabalho’ assim compreendido era a atividade em que se supunha que a humanidade como um todo estava envolvida por seu destino e natureza, e não por escolha, ao fazer história”[4]. Daí a ideia de que o trabalho é a condição natural dos seres humanos e, portanto, não trabalhar seria classificado como anormalidade, algo a ser evitado, seria necessário coagir cada indivíduo para o trabalho e jogar dentro do conceito de trabalho uma satisfação intrínseca em sua própria atividade.
No entanto, se a fé na capacidade humana tem decaído junto a validade do conceito de progresso, que já não tem justificativa numa sociedade sem autoconfiança, o todo para qual o trabalho seria o motor de aperfeiçoamento também deixa de ter delimitações claras, a ordem total não parece mais ser uma ideia razoável e o futuro deixa de ser algo distante, que existe um comprometimento a longo prazo, e passa a ser uma fatia menor e mais próxima do cotidiano presente. Na modernidade líquida, a continuidade deixa de ter o valor acumulativo que o aperfeiçoamento pede, já que o tempo é um conjunto de fatias separadas justapostas, em série. E neste contexto, nenhum projeto de vida suporta de fato uma vida inteira, viram uma piada.
A alegoria de Bauman para este modo de experimentar o mundo está na relação entre os nômades e os sedentários. Segundo o sociólogo, o povo nômade transmitiu aos sedentários uma alegoria da condição humana baseada na figura do labirinto, os sedentários, por sua vez, ao ganharem força na Europa através da instituição de sociedades prósperas, enfrentaram o labirinto da condição humana: nas línguas europeias, diz Bauman citando Attali, passam a considerar o labirinto como um sinônimo de complexidade artificial, enquanto a clareza traz consigo o significado da lógica. Ao se enfrentar o labirinto, o embate se dá contra um mundo de episódios isolados, sem ligações, sem continuidade, sem história. O mundo do labirinto é o mundo do jogo, não da construção da ordem futuro, projeto empreendido a longo prazo.
Os nômades ganharam espaço na modernidade líquida na medida em que o labirinto, a vida por etapas curtas e postas em série, ganhou na organização temporal e social da sociedade contínua, dos projetos a longo prazo. O resultado é a mudança do status do trabalho: de um projeto de vida. Tornou-se uma atividade imediata, tendo como modelo explicativo o bricoleur. O trabalho na dita pós-modernidade é feito de uma oportunidade, não de um projeto, é feito a partir do que se tem, não do ponto em que se quer chegar. É uma tarefa de remendo, não de construção de futuro, na medida em que o mundo atual não é modificado, mas sempre reproduzido a partir da própria prática sem direcionamento dos indivíduos. Não se vê no trabalho nem uma formação moral, nem um modelamento ético, já que não há projeto para se engajar, não há condutas para alcançar esse projeto. O trabalho tem valor estético maior que ético, deve ser aproveitado naquilo que é, não em seus resultados futuros, deve ser pensado na satisfação do consumidor, não na produção de um mundo melhor.
Bauman utiliza o argumento de Karl Polanyi, em sua atualização de Karl Marx, para explicar que a possibilidade de ver no trabalho um elemento separado da vida, portanto, algo que pode ser vendido, teve como fundamento “a separação dos trabalhadores de suas fontes de existência”. Este evento fez parte de um processo maior, de separação da produção e da troca e, portanto, da fragmentação de algo que era inscrito numa vida indivisível. A fragmentação deu caminho para que a terra, o trabalho e o dinheiro se transformassem em meras mercadorias.
A separação das atividades produtivas do resto dos objetivos da vida permitiu que o “esforço físico e mental” se condensasse num fenômeno em si mesmo – uma “coisa” a ser tratada como todas as coisas, isto é, a ser “manipulada”, movida, reunida a outras “coisas” ou feita em pedaços.
Um exemplo de totalidade que condensava diversos fenômenos era a terra, na visão pré-industrial de riqueza. Ela colocava dentro de si ela própria, aqueles que a cultivavam e a aravam. A riqueza só passou a ser vista nos braços dos seres humanos quando a Grã-Bretanha, terra que iniciou tal tipo de visão, destruiu todo seu campesinato e fez com que seus cultivadores de terra ficassem ociosos, vagabundos, sem nenhum senhor (já que não havia terra para trabalhar). A ordem que nasce junto a nova visão de trabalho da sociedade industrial é “construída”, ou seja, é projetada, não é produto do acaso, mas tenta ser autoconsciente e quando percebe que o trabalho é a fonte de toda riqueza, essa nova ordem estruturada pela razão tenta extrair o máximo que pode dele.
A extração máxima do trabalho é vista no modelo de fábrica fordista: o mito do aumento de salários dado por Ford para que seus empregados pudessem comprar os carros que fabricavam encobre o motivo verdadeiro da ação heterodoxa do diretor, pois o objetivo do aumento de salários era diminuir a rotatividade em sua empresa, o que lhe causava atraso na produção e, portanto, perda de dinheiro. O objetivo de Ford era prender, fixar e manter os empregados em sua fábrica, de preferência até que toda capacidade produtiva de cada empregado acabasse.
Este modelo gera uma relação face a face de trabalho e capital. Segundo Bauman, essa relação é até mesmo complementar, para além de comportar um embate permanente, já que os empregados tinham que se manter fortes e saudáveis para serem de fato empregados e os empregadores precisavam continuar comprando trabalho e mantendo o proletariado empregado. O Estado de bem-estar social tinha como função manter todo exército reserva apto ao trabalho, sua função era dar cabo daqueles que não poderiam ser empregados, mas que seriam de fato encarregados de alguma tarefa num futuro próximo. A tarefa do Estado de bem-estar social era colocar na linha da normalidade toda população anormal, mantê-los no interior da sociedade normalizada. Capital e trabalho, portanto, são lados casados, formam uma relação impossível de dissociar naquele momento histórico.
O salto da pós-modernidade é a tarefa individual de projeto de vida, reforçada pela incerteza típica de nossos tempos. A incerteza é uma força individualizante, ela é uma maneira de evitar e desvalorizar a solidariedade, a firmação de laços com objetivo de conquistar algo a longo prazo. Todo sofrimento contemporâneo foi feito para ser sofrido em solidão, propositalmente não se somam, não conseguem se acumular e, portanto, não podem ser parte de algo comum. Os sofrimentos individuais evitam a associação militante entre trabalhadores como era feito nas décadas passadas, já que não há mais solidariedade que os coloque no mesmo grupo. O desencantamento da militância sindical segue de mãos dadas com a desregulamentação galopante do trabalho, no Brasil vista através da constante pejotização de profissionais.
A presente versão “liquefeita”, “fluida”, dispersa, espalhada e desregulada da modernidade pode não implicar o divórcio e ruptura final da comunicação, mas anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho.
Com a extraterritorialidade do capital, as instituições políticas não podem fazer muito mais do que adular o capital, para que se fixe por momentos a mais no mesmo local. A única chance de um governo preocupado com o bem-estar de seus cidadãos, mas ainda preso aos moldes de sociedade capitalistas, é jogar o jogo das empresas, da iniciativa privada, e utilizar seu poder de regulação para fazer o inverso: desregular, desmantelar e destruir as leis e estatutos considerados impeditivos aos interesses do capital, assim, conseguem alguma credibilidade e confiança do setor privado e recebem em contrapartida migalhas de segurança para sua administração.
Na prática, isso significa baixos impostos, menos regras e, acima de tudo, um “mercado de trabalho flexível”. Em termos mais gerais, significa uma população dócil, incapaz ou não-desejosa de oferecer resistência organizada a qualquer decisão que o capital venha a tomar.
Dentro dessa perspectiva, quem mais sofre é o trabalhador de rotina, o proletário de trabalhos repetitivos, que não interage com o cliente e não precisa renovar seu método de trabalho constantemente, pois ele é o mais fácil de ser substituído e é o mais vulnerável às mudanças de interesse geográfico do capital. Sennett é citado por Bauman por ter um trabalho relevante na análise ao longo do tempo da moral dos trabalhadores no mesmo local, uma de suas conclusões foi a diminuição da motivação e da moral dos trabalhadores após rodadas sucessivas de demissões nas ditas reduções de tamanho (downsizing), em vez de ficarem mais confiantes em seus cargos, perderam o interesse em investir tempo e raciocínio num emprego que não lhes dava nenhuma segurança.