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Escritor Decente ou Qualidade Literária?

Escritor Decente ou Qualidade Literária?

Dentro do pensamento literário, há vários conceitos que não se deixam definir com facilidade. Na tentativa de se forçar a definição de alguns, complicam-se mais as coisas. Tomemos como exemplo a definição de “qualidade literária.” O que será? Quando é que uma determinada obra tem realmente qualidade? Qualquer definição de “qualidade literária” não será subjectiva, munida de argumentos individualistas e/ou pretensiosos? Existem critérios exactos e universais de “qualidade literária”? Validaremos os critérios do professor doutor, do jornalista cultural ou do crítico literário? Se fulano (por mais que apresente vários argumentos) considera que uma determinada obra tem “qualidade literária”, devemos simplesmente aceitar, somos obrigados a acreditar? Provavelmente resida nestes aspectos a complexidade do pensamento literário. O poço de subjectividades é profundo, não há matemática possível. O formalismo russo, inclusive, é incapaz de esgotar o assunto.

É certo que persiste o imbróglio por detrás da “qualidade literária.” No entanto, há livros que me instigaram a formular a expressão “escritor/escrita decente” em substituição de “qualidade literária.” A expressão nasce nas sombras de “Homens Decentes”, de Leonardo Padura, num contexto em que lia também “O Corte/The Ax”, de Donald Westlake e “Cartas a Um Jovem Romacista”, de Mário Vargas Llosa.

Pus-me a pensar: se a “qualidade literária” é uma incógnita, a “escrita decente” é uma certeza.

Deixem-me entrar por aqui: escritores decentes são sinceros ao seleccionar as palavras que deverão constar dos seus textos, não se dão ao trabalho de forçar a linguagem para fins obscuros associados à vaidade literária. A literatura, como qualquer outra manifestação artística, abre espaço para a aceitação do impossível. No entanto, são decentes aqueles escritores que, cientes da liberdade criativa de que gozam, distanciam-se dos excessos ou de pretensões enganosas que apenas servem para “engrandecer” o ego.

Mário Vargas Llosa, nas suas “Cartas a um Jovem Romancista”, por exemplo, arrola uma série de argumentos, chegando a afirmar que o romancista não se deixa driblar pela simples pretensão de “brilhar” e mostrar-se ao público. Ou seja, “o escritor decente” escreve sem se deixar influenciar com o que está na moda, não entra no politicamente correcto ou na rede de temas populares ou popularizados.

O “escritor decente” deixa-se guiar pelas emoções que lhe são peculiares e pelos temas que verdadeiramente lhe chocalham as entranhas e a consciência, assim como a inconsciência e subconsciência (o reservatório de sentimentos, pensamentos, impulsos e memórias que estão fora da percepção consciente).

Na execução genuína de um trabalho literário, sem abrir espaço para mesquinhices, o “escritor decente” respeita os elementos linguísticos, o seu conhecimento sobre o tema escolhido, a sua relação com o ambiente explorado, sabendo lidar com momentos altos e baixos, e outras dinâmicas intrínsecas à narrativa. Neste processo, a sinceridade, a genuidade, a curiosidade própria, o tempo e o espaço constituem ferramentas obrigatórias do escritor, verdadeiros instrumentos do seu “fazer literário.”

 

Artista ou Entertainer?

À medida que me ponho a escrever tremendamente e a descobrir mais escritores e romances, apercebo-me dos argumentos levantados por Llosa nas “Cartas a um Jovem Romancista” e observo o quão é belo, entretanto perigoso, o exercício de escrever decentemente.

É deveras complexo escrever com sinceridade. Tal exercício custa os olhos da cara ou a faces todas. O exercício de composição do romance, em particular, assemelha-se a um beco sem saída para onde o escritor cai constantemente, por isso obrigado a estar sempre de olho aberto para sobreviver durante o processo de escrita. Sem a atenção necessária, o romancista acaba sendo uma piada para a própria intenção de escrever, os personagens riem-se de si, os lugares põem-se em movimento e o tempo quebra-se ao longo das páginas.

Hannah Arendt, num dos seus ensaios filosóficos, estabelece uma grande diferença entre a obra de arte e a de entretenimento. A primeira só é possível quando o artista (escritor/romancista) deixa-se guiar pela honestidade e sinceridade, tendo como ponto nuclear a exteriorização das genuínas ideias. A obra de entretenimento, por sua vez, será aquela coisa que o “entertainer”, que se faz passar por artista, expele pretensiosamente com o objectivo último de se exibir e angariar alguma visibilidade entre as massas, e ganhar algumas “apalpadelas” nas costas…

Nesta lógica, entretanto, são abençoados aqueles artistas que, com as suas obras, conseguem penetrar ambos mundos – o da arte e o do entretenimento.

 

Por: Albert Dalela

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Fernando Chaúque

FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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