Quinta-feira, Novembro 21

Lutar é um acto de coragem que, geralmente, é assumido com uma actividade supérflua. Mas há quem torna isto uma fonte de renda. Bater para ter dinheiro. Apreciável até certa altura. No entanto, há quem bate por nada. Desta forma, olhando para a sociedade moçambicana, a sul do Save, bater na mulher é sinónimo de amor. Quando a mulher reage significa uma afronta enorme às convenções da sociedade. E quem sugere-nos esta realidade é a crónica “O Regresso à casa”, que se engloba a um total de 22 textos que perfazem a recente obra de Mia Couto, intitulada “Compêndio para Desenterrar Nuvens”, concebida em pouco mais de 142 páginas e sob chancela da Fundação Fernando Leite Couto.

Mia Couto é o segundo moçambicano a vencer o prémio Camões, em 2013, o maior galardão a nível dos países lusófonos. Em 2015 foi finalista do prémio The Man Booker Prize. E, recentemente, em 2022, venceu o prémio José Craveirinha, o mais importante prémio de literatura em Moçambique.

A crónica a qual propusemo-nos a analisar, “O Regresso à Casa”, o narrador dá-nos a conhecer uma personagem tipo, Matilde, mulher submissa aos maus tratos do marido, Tadeu. Eis que o marido desperta com os olhos embaraçados, como ilustra a seguinte passagem: “o homem entreabriu os olhos, num esvoaçar de pestanas e espreitou por aquela fresta como um enterrado perscruta por entre os torrões da terra” (p. 27). Tadeu, não sabia o que lhe tinha acontecido, porque afinal os dias já lhe pareciam estranhos. Matilde, sua esposa, saía pela tarde sob pretexto de ir à igreja ajudar o padre em acções de caridade. Razão por que, sempre que voltasse para casa, a porrada já lhe vinha aguardando à entrada de casa. O que Tadeu não sabia era que aconteceria o impensável: “Matilde desviou-se do golpe e a perna de Tadeu desorbitou-se pelo vazio. Uma vez mais, a mulher se esquivou com habilidade de Bruce Lee.” (p.29)

Estes actos de Matilde, revelam um autêntico desrespeito ao homem, conforme referimos anteriormente, pois o certo seria a mulher aceitar tudo quanto o marido quisesse fazer com o corpo da amada: “porque não fazia como sempre fizera, enroscada no chão como um pangolim implorando, aos prantos, para que fosse poupada? (p.9). Portanto, depois desta fronta, certo dia Tadeu decide seguir a esposa até à suposta igreja. Afinal, ela ia a uma escola na qual estava cravado “Escola Nelson Mandela”. Seguiu-a. Pôs-se no interior da sala e ouvira homens gritando e pulando numa dança estrambólica. Depois seguiu-se a esposa, Matilde, quase despida e integrou a dança na roda que os homens tinham feito. Tadeu, não se conseguiu conter e fez-se à roda e a parede tomou conta de si. Não mais se sentia. O apocalipse demorou até que regressou a si a cabeça apoiada no colo da esposa e camaloneamente percebeu que na parede estava reproduzida a figura de Nelson Mandela vestido de pugilista e, Tadeu ordena que Matilde, sua querida esposa, tire as luvas.

A história que nos é trazida pelo autor é bastante sugestiva, pois traz-nos uma realidade distinta do habitual. Aquela em que a mulher é inteiramente submissa aos maus tratos do homem. Para tanto, revela-se uma personagem, Matilde, que veio mudar as convenções da saciedade e mostra o quão a mulher pode reerguer-se e demonstrar o real valor. Esta é uma personagem que se distanciou dos estereótipos: treinar para defender-se. O que não aconteceu com a personagem “Ngilina” do conto “Ngilina, tu vai morrer”, da obra “O Regresso do Morto (2009)”, de Suleiman Cassamo. A história é simples: o marido de Ngilina, obrigava-a a relacionar-se sexualmente todos os dias. Ngilina, por sua vez, cansada desta situação, viu o suicídio como a melhor forma de terminar com aquela submissão. Neste sentido, se ela tivesse tomado a postura de Matilde, o suicídio jamais se consumaria. Pelo que, pode-se olhar para o texto em análise, como uma chamada de atenção às mulheres, de modo a que não se submetam a situações fortemente degradantes por amor. Desta forma, por um lado assumimos que é uma narrativa épica. Aquela quem tem um herói. No caso, uma heroína, a Matilde. Por outro lado, podemos afirmar que o texto em questão, é uma narrativa comedida entre a comédia e a tragédia, na medida em que nos dois géneros, a intenção é trazer à superfície, a função pedagógica. E, Mia soube conjugar num estilo não peculiar à sua escrita. Neste texto e na obra completa, denuncia-se um escritor bastante simples a nível da linguagem. Aqui, distancia-se dos já conhecidos neologismos e mesmo assim, a sua perfeição continua patente. Parece-nos um escritor preocupado com a sociedade. Por conseguinte, pensamos que a leitura deste texto é de extrema importância, visto que, acreditamos que o nível de submissão às ideias arcaicas, reduziria, significativamente, os suicídios e até eventuais depressões. Como diz Martin Luther King, JR. “Que a Liberdade Ressoe”. Que as mulheres despertem e tornem-se livres.

Referências

COUTO, Mia (2023). Compêndio para Desenterrar Nuvens. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto. (PP. 27-31)

CASSAMO, Suleiman (2009). O Regresso do Morto. 3ª Edição. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos. (PP. 10-13).

Por Gil Cossa

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FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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