Por Ericson Sembuer
O motorista dirige-nos como se estivesse numa Missão Homicida. Ele parece ter um radar especial para detectar todos os buracos e desviar o machimbombo directamente para eles. Eu tenho agora sérias dificuldades para apontar as notas do trânsito neste Caderno de Dias. A viagem absorve a tensão dos buracos dessa estrada por onde se arrasta em tropeções o machimbombo. A cada curva descobre-se mais uma posição para acomodar a dor. Os assentos do carro parecem ter sido feitos especialmente para garantir desconforto e dores nas costas. Alguns passageiros se acomodam e outros se incomodam em seus assentos, a tentar encontrar alguma forma de conforto em meio a constância dos solavancos. A maioria dessa gente atira os olhos pela janela, no intento desesperado de, se calhar, alvejar algum sentido no vácuo das ruas que passam. A paisagem árida e desolada ao longo da estrada reflecte, tão fielmente, o estado de espírito que afecta a muitos colegas dessa viagem. É como se estivéssemos a viajar através dos nossos próprios pesadelos.
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Aqui, no fundo do machimbombo, na outra fileira de assentos, um homem de aparente meia-idade, com o olhar em si mesmo disperso, parece alheio a flexão de tumultos em seu redor. Os seus olhos estão inteiros para a janela, mas ele não parece contemplar a paisagem baldia que lhe beija a retina. Eu entrei inteiro na cabeça desse senhor, tanto pelos olhos quanto pelos ouvidos. É factual que os médicos (neurólogos, psiquiatras, cirurgiões, psicólogos…) apreendem muita novidade sobre doenças na interacção com os seus pacientes. É um facto muitas vezes ignorado que os pacientes apreendem também muita coisa sobre medicina (Neurologia, Psiquiatria, Psicologia,…) na interacção com os seus médicos, mormente em função de métodos de procedimento. Eis que me apraz agora experimentar, neste senhor, a aplicação de algumas teorias bizarras que aprendi e apreendi nas sessões de terapia.
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As rugas nos rostos dos passageiros denunciam o peso de um dia difícil. O motorista tenta nos tranquilizar a dizer que conhece bem cada buraco desta estrada por onde arrasta o machimbombo. Pouca gente dá-lhe atenção. Ninguém dá-lhe crédito. Estão quase todos esgotados. Estão todos para nada. Até mesmo a esperança anda exausta. A noite, pelo menos, tem piedade do torpor a que o sol nos sujeita. Oh, ilusão da esperança! À medida que a escuridão se estende fria por sobre a viagem, a tensão da estrada engravida ainda mais o ambiente dentro do machimbombo. Alguns corações estão agora nas mãos. Algumas mãos estão agora nas cabeças. Algumas cabeças estão agora abaixadas. E lá em baixo arde a estrada na compunção da viagem. A decisão de viajar pela Estrada Nacional Número Um tem de ser tomada sempre com o domínio de alguma coragem consciente. Em todo o caso, toda escolha nos confere sempe a possibilidade de nos arrependermos.
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O homem aqui no fundo tem agora, nas mãos trémulas, um caderno cujo conteúdo parece assustá-lo na mesma medida que o apazigua. O seu espírito resiste ao juízo do teor que treme em suas mãos, mas a sua alma jaz absorvida pelo distúrbio em sua leitura e o seu corpo entrebucha-se subtilmente num tremor alheio aos buracos da estrada. Ele reconfigura-se à quietude, oferece-me o seu olhar de consumação e acena três vezes com a cabeça como quem realça a profundidade de uma gratidão. Eu esboço um sorriso e pisco-lhe o olho direito como quem dispõe. Acho que ninguém, além de mim, presta tão generosa atenção à peculiaridade do caso desse senhor. Estão todos os outros passageiros absortos em suas próprias lutas contra o desconforto dos buracos na estrada, a longa fadiga da viagem e a conjunção reprimida do sono. Fecharam-se as bocas sujas que o machimbombo tinha para bufar boatos sobre celebridades e/ou influencers, cagar boatos sobre vizinhos e feder fofocas sobre familiares. Abriram-se agora as bocas de murmurar a arduidade da estrada.
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Ao clímax da noite, o machimbombo parou numa área recôndita [cujo nome não sei digitalizar] e o silêncio do desespero infestou a todos. Eu gosto mesmo de como o autocarro pára em cada esquina, especialmente quando estou com pressa! Mas… Não estou mais com pressa nem ansioso. Tenho aqui ainda muitos experimentos por proceder. Tenho ainda programas por cumprir a meu belprazer. De facto, cada frenagem brusca do autocarro é mais um golpe de tortura psicológica, a menos que os factos sejam fiéis à configuração dos meus planos. Enfim… Enquanto todos desciam para esticar as pernas, bufar, mijar, cagar, foder, fumar,… aquele homem permaneceu imoto no seu assento. Eu tive de sair por precaução, tanto da merda que aí havia ocorrido quanto da que ainda havia de ocorrer. Alguns minutos depois, um grito com a figuração de Edward Munch abalou o machimbombo. Os outros passageiros aceleraram os passos rumo ao carro e encontraram o homem pendurado na barra de apoio da bagageira, com um cinto de segurança enrolado no seu pescoço, a alternância de uma babugem em fluxo pela boca, uma poção de ranho à espreita pelo nariz esquerdo e um fedor a fezes a sair das suas calças jeans azuis que gotejavam mijo.
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As crianças foram, de imediato, afastadas mais para frente e, então, nisso me fiz pequenino, mas não tanto ao ponto de perder a vista do caso. O motorista, em alto choque, tentou desamarrar o corpo enquanto os passageiros assistiam, inertes pela extensão morbígena do horror. Mas era tarde demais – até porque já era meia noite. O corpo foi estendido no chão, no final do corredor, onde se legislou que lá devia permanecer. O machimbombo, enfim, prosseguiu com a viagem a carregar no corredor o peso de alguém que não existe. O silêncio que se seguiu foi de sufocar, como se a própria estrada houvesse absorvido o suspiro derradeiro daquele homem que quase ninguém conhecia. A cada buraco por onde o machimbombo passava, o corpo se sacudia em ânimo como se nele alguma vida ainda existisse ou resistisse. Cada sacudidela era um vector para a dispersão do hálito da urina e das fezes comprimidas naquele corpo. Ninguém soube extinguir cabalmente o cheiro de morte, que ainda pairava às narinas do machimbombo. Estou agora orgulhoso de mim pelo experimento, confesso. Eu, finalmente, consegui calar a boca suja dessa gente. A viagem tem agora um outro fleuma, apesar da arduidade da estrada.
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Eu aprendi muitos métodos de procedimentos com os meus médicos, especialmente com o Dr. Viktor – o meu último psicólogo –, que se dignava a clarificar os pormenores de cada caso. Aprendi, por exemplo, que a coação psíquica pode ser muito eficaz para separar, baralhar e dominar a personalidade dos pacientes, embora falhe quando os métodos são demasiado óbvios em função de um paciente com pulsões muito altas. Enquanto paciente, estive sujeito a bizarrice de duas coações psíquicas que falharam. Mas, enquanto um artista de morte, sou muito excepcional – para ser modesto. Nesse exercício, urge ser frugal e não exercer pressão explícita. Quando se usa a força, a cobaia poderá apenas se sujeitar momentaneamente. Mas, assim que for exposto ao método de manipulação, este se torna disfuncional. A cobaia não pode estar cônscia de nenhum influxo psíquico. Podemos cuidar e nutrir a lagarta e, durante seu estágio de casulo, tentar influenciá-la de alguma forma. Porém, o processo de transformação que acontece dentro do casulo segue suas próprias leis naturais e está além do nosso controle. Enfim… Tenho agora comigo o caderno que imprimiu o susto no rosto daquele homem, influiu no tremor de suas mãos e o legou a consumação de sua vida – tomei-o de volta para mim antes que o perdesse para a intrepidez de quaisquer outras mãos. Um homem se enforcou na perversão das linhas desse caderno. Aquele homem morreu da grafia em que me leu.
— Experimento concluído com sucesso.