“Erotismo e poesia: o primeiro é uma metáfora da sexualidade, o
segundo, uma erotização da linguagem”. – Octavio Paz
- Moçambique é uma pátria de poetas. Os poucos anos de fulgor com que a nossa literatura tem já legaram, pelo menos, alguns nomes incontornáveis na poesia pensada e sentida em português. Não é menos verídico que dentro dessa vasta produção poética o erótico tem assumido um lugar de destaque. Desde poetas como Virgílio de Lemos (Lee-Li Yang), José Craveirinha, Eduardo White, Armando Artur, a temática do erótico tem-se sobressaltado, e esta linha de escrita tem sido continuada por nomes como Sangare Okapi[1], n’Os poros da concha(2018) que nos colocamos a analisar, Léo Cote, em Eroticus – onze poemas e uma quadra sob medida (2020) e Rafael Inguane, em Sexo & grafia (2017).
- O erótico tem raízes clássicas na tradição literária e filosófica ocidental. Ainda que partamos da etimologia do termo Eros, que remete ao deus grego do Amor (designado Cupido pelos romanos), é porém em Platão, filósofo grego do séc. IV a.C. que pela primeira vez encontramos uma formulação discursiva em torno do erotismo, em sua obra O Banquete.Nesse livro, composto em forma de diálogos, como praxe no corpus platónico, um dos intervenientes, Aristófanes, tece certos elogios a Eros, o deus do Amor. Adiante veremos em que consistiam os elogios à divindade. Aristófanes alude que, em tempos remotos havia, além dos sexos masculino e feminino, o andrógino, que então possuía os dois sexos e era mais forte e perfeito que os demais (Platão, 1997, p. 39-98).
O andrógino era atravessado pelas características de ambos os sexos e a sua força e perfeição tornavam-lhe arrogante a ponto de se rebelar contra os deuses. Foi por isso que, segundo nos conta Platão, Zeus o castigou. Tal castigo significou à fragmentação do andrógino em dois, e assim surgiu o masculino e o feminino para que aos deuses se curvassem. Toda a trajectória existencial dos seres masculino e feminino subsume à procura do portal que os possa devolver ao modo primário, como antes eram, unidos e únicos, num só ser. Dada essa dolorosa cisão do andrógino, como que repletas de incompletude e fragmentadas, vagam até hoje à procura da união de si cada uma das partes do par, “ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro” (Platão, 1997, p. 127).
Para os gregos, a união dos seres antes separados é restabelecida por Eros, entidade que religa os seres humanos e re-tornam-se um, em perfeita combinação que nos lembra a primeira, ainda que isto ocorra por um curto instante, simbolizado pelos corpos que se unem no acto sexual. É então aqui onde se verifica a exaltação gloriosa ao deus do Amor por Aristófanes, como o responsável por compor o vínculo antes quebrado.
O erótico, assim, de acordo com essa percepção, está contido, inicialmente, na simbologia do acto sexual, presentificada a partir da união entre dois corpos, tomados entre si e no compartilhamento de uma paixão voluptuosa equilateral. Os dicionários definem o erótico como expressão do amor enfermo, paixão sensual insistente, paixão fulgurosa, busca exagerada pelo sensual, intensa lascívia, amor voluptuoso e libidinoso (Houaiss, 2008, p. 351). Ou seja, o erótico é dado pela experiência adquirida no amor sexual; ao que é dito em surdina; à luz frouxa; ao toque sedoso; à menção acerca; à dialéctica entre o desejo e os corpos tomados por este.
E é dentro desses códigos linguísticos que iremos procurar ressaltar a acústica do erótico na poética de Sangare Okapi. E o título, Os poros da concha, é já uma sugestão propedêutica ao que pretendemos encontrar. Os poros, de que se faz um dos conceitos do título, representam as pequenas aberturas que permitem que algo penetre ou saia de um invólucro protector, e a concha, por conseguinte, é biologicamente a casca externa que protege algo. Numa perspectiva poética, Os poros da concha simbolizam o frágil, o sensível, o corpo feminino e suas “aberturas” que são fonte de prazer, beleza e poesia.
- Longe de toda a religiosidade sociocultural imputada aos signos linguísticos, as palavras “falo”, “coxas”, “vulva”, “lábios”, “nua”, “escroto”, “sexo”, “erecção”, n’Os poros da concha, nascem incontidas e vorazes como a acústica da expressão das volições do corpo para o eu-lírico que se conduz, quase como regra, à mulher. Entretanto, por vezes esses termos são dados ao entendimento do leitor através de metáforas e metonímias com elementos linguístico-culturais retomados do habitat do poeta:
coerência agramatical ou ronga a língua que soluço
adjectivos que em teu corpo incauto acrescento
repito uva a vulva se espontânea mão a gruta alcança
ou óvulo ou trompa ou útero o que encubas
lugar que meu animal quero crescer até tarde (p. 20).
N’Os poros da concha, o corpo feminino é objecto da poiesis como fenómeno de contingência de seu valor erótico. Tais insinuações mediante a acústica do corpo feminino e seus conceitos libidinais coadjuvantes fazem-se mais intrigantes à medida que o poeta aborda o conteúdo do corpo com forte valor subjectivo sem manter distância dessa matéria palpável na qual a “espontânea mão a gruta alcança”. Porém ressoa, pelo menos no poema acima, com a extensão semântica, digamos através das metafóricas figurações do corpo feminino (uva, vulva, óvulo, trompa e útero), uma procura, por parte do sujeito-poético, pela essência da fertilidade e da vida, como um desejo que lhe move e que, pelo seu desejo de: “meu animal quero crescer até tarde”, lhe é uma necessidade conectar-se e experienciar o prazer.
Para o eu-lírico okapiano, o corpo que se abre ao toque sensível não é vazio, uma pictórica descrição do concreto e sem o pulsar da vida, é de natureza dinâmica e imprime estímulos externos e assentes na cultura moçambicana, inclusive as energias libertas pelo amor e seus fins têm tal apelo. Diríamos que é com o corpo que se sente; que se comunica com os outros; que se torna consciente e se mostra que se necessita do outro como espaço de coexistência, porque o corpo-feminino, aqui, existencia-se como antro em que o eu-lírico, também outro, encontra lugar para fazer com que um outro, produto dessa união erótica, possa habitar até tarde. Esse “tarde” que é evocado no último verso do poema acima, não é aquele tarde que se extensiona como demorado, mas um tarde de volúpia e gozo; é o tarde de se esperançar que chegue a teleologia dos valores materiais de Eros: a união outrora quebrada e ora refeita de dois seres humanos.
Os campos de construção do edifício poético d’Os poros da concha abrem-se, quase que recorrentemente, pela evocação erotizada entre o corpo feminino e o habitat do poeta. Esses fornecem matéria para os deleites internos e os prazeres do corpo feminino que é, também, mediante o processo metonímico, um espaço ocupado pelos lugares de Moçambique (Matalana, Gilé, Mossuril, as casas de madeira e zinco, em referência à urbe Maputo, jardim Tunduru), pelas gentes que importam (Malangatana, Reinata Sadimba), pelos frutos silvestres e bebidas tradicionais (uputso, ntsiva) e toda uma cultura dos ronga[2], quiçá o berço do poeta como personare. Tais lugares e a referência à cultura ronga, são elementos basilares para o entendimento da acústica do erótico em Sangare Okapi. Afinal o Homem é um animal geocultural. Como animal, liberta suas forças vitais contidas em paixões, na vida, no movimento absurdo da existência. Como geocultural, e como um projecto lançado à mundanidade, apega-se ao seu lugar de origem e sua cultura, com um impulso decadente de fé que não consegue afastá-lo de sua terra e seus elementos arqueológicos, e isso torna-se, para o poeta, também representação de seus gozos e apetites mundanos.
Com efeito, a expressão geocultural, n’Os poros da concha, está vinculada a razões eróticas: a afirmação identitária do lugar-de-pertença e o sensualismo cruzam-se constantemente. O erotismo e a cultura (fundamentação primária daquilo que somos, de como os outros nos vêem e de como nos queremos deixar ver) constituem um dos temas abordados pelo poeta. Ora escutemos a voz que nos segreda:
que medo este monumento adita no coração
ronga estrutura de betão no capim desarmada
ou nua silhueta de mulher no reforjo rendida
cabaça com o vento forte agitando a capulana
com máscaras levantando vultos em Matalana (p. 28).
A poesia de Sangare Okapi ressalta fortemente os valores sensoriais. Nela o erótico é conhecido e contemplado através dos sentidos. O corpo masculino descrito e inscrito na matriz cultural ronga de homem de porte forte ou “estrutura de betão”, deitado no “capim”, medita o medo da perda da possibilidade de ver-se conectado diante da “nua silhueta de mulher no reforjo rendida”, onde esta, sendo de uma “cabaça”, aos ventos se lhe agita a capulana, tecido que cobre o corpo, lugar do erótico em Moçambique. A capulana é um tecido de fibra de algodão estampada em uma variedade de cores e padrões, e é uma peça fundante da feminilidade nas Terras do Índico. É aqui onde afirmamos que há uma profusão entre o erótico e os elementos estruturantes da mundivisão habitacional do poeta. A capulana é uma peça que configura toda uma expressão geocultural da mulher moçambicana. No quotidiano, refere Souza, a capulana é utilizada de diferentes formas, tais como: para carregar o bebé, ir a machamba, como parte da indumentária, para cerimónias religiosas, fúnebres, nos ritos de iniciação, noivado, lobolo, assim como em datas comemorativas de diferentes categorias (Souza, 2020, p. 81).
Vista como peça fundante do ser mulher, a capulana é quase um elemento sagrado entre as mulheres moçambicanas. E tal noção sacra atravessa o campo das experiências diárias e entra na literatura desse povo, como vimos no poema acima de Sangare Okapi, bem como em Niketche – uma história de poligamia, onde se adverte, como mandam os bons costumes:
mulher, leva sempre contigo a capulana, para ser a tua coberta em caso de sol. Para ser a tua mortalha, caso encontres a morte. Para cobrir o teu leito, caso encontres o amor. Para cobrir o rosto, em caso de vergonha. Para cobrir o nu, caso percas a tua roupa, e esconder a tua vergonha aos olhos do mundo (Chiziane, 2004, p. 81).
O último verso do poema: “com máscaras levantando vultos em Matalana”, revisita, numa espécie de dialogismo, a espiritualidade do erótico que é atingida através dos sentidos que se deixam ler nos vultos e figuras de uma estética exótica, quase sempre desnudados e sem pudor, pintados pelo artista plástico-mor Malangatana em seu ateliê em Matalana, seu berço de gestação.
Quiçá se justifique que o poema seja em homenagem a Malangatana, aquele que espiritualmente soube tirar a coberta dos prazeres mais obscuros do seu povo, quando do seu pincel sobressaíram, numa espécie de fenomenologia dos corpos nus e crus, os aspectos de nossa quotidianidade em sua dimensão mítico-existencial. Essa nudez, afinal, era-nos comunicativa de quem somos. O erótico que trasvestia os seres de Malangatana seria uma espécie de culto ao sentimento expresso pela sensação corpórea de seus entes pintados, cuja finalidade seria comunicar uma mensagem. Tanto nas pictóricas criações de Malangatana como na palavra despida de Sangare Okapi, “o erotismo é a sexualidade reintegrada em uma ampla variedade de propósitos emocionais, entre os quais o mais importante é a comunicação” (Giddens, 1993, p. 220).
A comunicação aqui aludida submete os signos linguísticos e o pensamento usados no contexto do erotismo como caminho para se chegar aos bastidores de onde adormecem os impulsos mais primários dos seres humanos. Enfatiza-se, portanto, a relevância do erótico ao desmitologizar o vínculo quase inquebrantável e infinito deste com a experiência sexual, pondo na pauta em que se possa, antes, admitir o peso das experiências sensíveis que despontam no prazer sublime aquém do acto sexual. Porque aliar o erótico somente ao sexual seria reduzi-lo em toda sua esfera de valores configurantes.
- Mas se o erótico comunica-nos, é porque fala-nos numa linguagem. Ozeitgeist, a usar da terminologia hegeliana para se referir ao curso de eventos dominante de um tempo e espaço, é responsável porfazer a noção do erótico, sendo este a expressão das concepções linguístico-antropológicas localizadas. Diante disso, que não se confunda a imagem do corpo dada à percepção através desses poemas como uma descrição universal. Esse corpo poetado é uma recriação estética inspirada no corpo real, porém com variáveis de interpretação enquanto conceito, pois o erótico é um fenómeno distinto em época, cultura e sociedade. E necessariamente, o corpo, os exercícios da sexualidade, os géneros e até as balizas impostas ao corpo, numa espécie de mito ou tabu, são também entendidos do ponto de vista sociocultural, de tal forma que é quase impossível que a acústica do erótico seja dada por uma gramática universal, num conceito fechado.
E é atento a esse aspecto que Sangare Okapi estabeleceu vínculos do corpo com a sociedade na qual está inserido, pois não fosse suficiente que a linguagem erótica é conduzida pela visão cultural, o poeta rebuscou em vários textos a fala das cosmovisões, brincadeiras e lugares típicos de seu habitat, para configurar o corpo. É por essa razão que as imagens da rupestre camponesa, capulana, cabelos vermelhos das acácias, antílope, flor, gala-gala, lagartixa, por exemplo, foram tomadas para assinalar a acústica do erótico que recai no corpo feminino.
O contexto é, em certo modo, determinante para a estruturação semântica do discurso. E quando o poema nos fala do corpo, da mulher, fá-lo a partir de uma espécie de desvelamento do universo do poeta, onde se estampa nele o seu mundo-de-vida. Porque poetar é uma modalidade de comunicar, ou também uma necessidade de falar em outras linguagens o que somos ou experimentamos, e como falar ou comunicar implica reconhecer que “os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo” (Wittgenstein, 1986, p. 111), Sangare Okapi traz-nos em sua linguagem as experiências de seu mundo, e destas sobressai o som que cada signo conserva da sua relação erótica com o espaço e vivências:
arrojada invades o envelope lacrado
e não te conténs de tantos beijos à planície
carnal da língua chão que nos lábios
evolutivamente se extenua
ntsiva rural que só tu amor na boca líquida
sabes total e silvestre amadurecer (p. 19)
este poema preserva em si, na sua matéria, a volúpia e o sabor do encontro entre dois seres nos corredores do corpo. Cada palavra, feita de imagens e de possibilidades aquém do dito (escrito), dá à acústica final do poema uma proto-essência, natural e dissimulada, apta a ser condicionada pelo leitor de modo a dar o seu significado. Cada signo, aqui, é o modo de expressão de que o som de cada gesto foi potência e estado factível, transição ao ser-em-si, o qual não é anunciado, cabendo a imaginação alcançar.
A união erótica dos corpos é dada mediante uma linguagem poética que utiliza imagens sensoriais para descrever a experiência. Nada em si é dito ou desdito quando o poeta diz, por exemplo, “arrojada invades o envelope lacrado”, porém sugere a metáfora que há um ser que invade um envelope lacrado, essa simbologia que nos leva até a exploração de um lugar secreto ou proibido, lá no corpo do outro. A segunda estrofe do poema, como que a dar azo ao movimento de união erótica iniciada na estrofe anterior através da intensidade dos beijos, que são tantos que a língua se extenua, refere-se com “só tu”, e esta fórmula guia-nos ao conhecimento que ambos amantes têm do íntimo e dos desejos um do outro, à capacidade de amadurecer o desejo entre eles, só como eles bem sabem.
Mas que desejo é esse? Dissimuladamente, as palavras escolhidas pelo poeta para a arquitectura do erótico indicam-nos que não foram exercício de um mero acaso. Os signos “silvestre” e “ntsiva rural” que aí aparecem nos versos arrastam-nos à percepção de um sentimento de natureza selvagem e primitiva, devolvendo-nos a um locus eroticus. Esses conceitos simbolizam a descrição da acústica do erótico remontando ao contexto da selva africana, do homem apaixonado e investido de volúpia, esse sentimento primitivo.
O poema transita da invasão ao corpo do outro aos beijos que se maturam na boca dos amantes, e a imagem que melhor descreveria tal experiência e que fosse, de certo modo, uma pictórica representação da acústica do eroticus moçambicanus seria a da “ntsiva rural”. A Ntsiva, designada cientificamente por dialium schlechteri, é uma fruta silvestre nativa de Moçambique com sabor semelhante ao tamarindo, que na “boca líquida” liberta o doce sabor que a caracteriza num serviço de degustação que exige o uso da língua para liquefazer a matéria sólida. Nisto, então, a imagem da ntsiva rural está ao serviço da linguagem poética para transmitir a forte sensação de desejo e intensidade com originalidade acústica, porque no exercício criativo de Sangare Okapi “falar significa colher e escolher perfis da experiência, recortá-los, transpô-los, e arrumá-los em uma seqüência fono-semântica” (Bosi, 1977, p. 24).
- Os retratos poéticos apresentados n’Os poros da conchaestão geralmente adensados de sensualidade e, naturalmente, elevam-se sobretudo na descrição de partes do corpo que denotam o erótico, ainda que não frontalmente. Nas figuras eróticas que perfazem a imagética dos poemas do autor, a árvore e seus elementos compositivos merecem destaque, pois é por via desses elementos da Terra (lugar de mundanidade e dos prazeres da carne), que partes do corpo ganham expressividade e o estético se sobressalta:
atalhos sentidos na erecção do caule
maduro o fruto adocicado entre as coxas
ou húmido o musgo na bexiga que a mão
te alcança nua e secretamente vegetal (p. 18)
A “erecção do caule” é a representação do falo erecto, de forma que, dito tal como aparece no poema, desperta o encanto e a abstracção requerida para a realização do erótico e do poético. A imagem das coxas que se desvelam como ramos, a seguir o contexto versejado que se inicia transfigurando o corpo feminino em metáforas botânicas, suscita sensações eróticas que o poeta utiliza de modo audaz como “atalhos sentidos na erecção do caule”, transpondo a excitação do falo à rigidez de um caule; no segundo verso: “fruto adocicado entre as coxas” leva-nos a ver, em sua construção imagética, os órgãos sexuais femininos como um fruto maduro e doce; e onde lemos: “secretamente vegetal”, o poeta compara a sexualidade à natureza, equiparando esta ultima à sensualidade e vitalidade. Tais metáforas se desdobram para alumiar a conexão estabelecida entre a Natureza e o corpo humano.
Há vezes em que a tendência dissimulatória do poético dado de modo hermético não tanto se logra, de forma que o erótico se escancara. É como se, ainda que as figuras de linguagem quisessem se tornar um minarete de ocultismo ruíssem diante da necessidade do eu-lírico expressar-se. E então o poema chega-nos assim, sem roupas:
quero a gruta mítica do corpo
com seus escuros e vibrações
para que arguta e nua no topo
a noite se resuma em canções (p. 27)
e o que se vê expresso é como é. É como é sem titubeio nem hesitações. É a necessidade de comunicar o que se deseja: “a gruta mítica do corpo”, que enquanto nela se está, com todas as energias que dela se libertam, a noite que tem sido reflexiva sobre a condição humana, “se resuma em canções”, essa que é reflexo de júbilo e gozo. É como se o erótico, aqui n’Os poros da concha, cumprisse uma função terapêutica de “ninar” as noites prenhes de reflexão e de indagações existenciais primeiras: sejam de ordem individual, política, económica e social que interpelam o homem e, portanto, dentro da gruta mítica, em fuga dos demónios da meia-noite, tudo se resumisse em canções. Porque quem canta, reza o adágio, os males da alma espanta.
Concluindo, pensamos que, na nossa tentativa de expandir a leitura do texto de Sangare Okapi, associando a acústica peculiarmente do erótico ao seu edifício poético, levámo-nos a zonas onde se cruzam algumas das linhas definidoras do que há, provavelmente de mais intenso, único e moçambicano em termos de criação poética à luz da dimensão geocultural, cujo se dá ao entendimento numa espécie de linguagem dada pelo que consideramos eroticus moçambicanus. Mas que testifica, assim mesmo, a vitalidade dessa poesia para além desses mesmos limites e torna-se a participação numa linguagem sem espaço, mas poesia.
Referências
Bosi, Alfredo. (1977). O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix, Ed. da USP.
Chiziane, Paulina. (2004). Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras.
Giddens, Anthony. (1993). A transfiguração da intimidade. São Paulo: UNESP.
Houaiss, Antônio. (2008). Dicionário Houaiss: sinônimos e antônimos. 2ª Ed. São Paulo: Publifolha.
Okapi, Sangare. (2018). Os poros da concha. Maputo: Cavalo do Mar.
Platão. (1997). O Banquete; ou, Do Amor. Platão; trad. de J. Cavalcante de Souza. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Souza, Regiane Marques. (2020). “Capulana e a moda em Moçambique”. Revista Eletrônica Discente História.com, Cachoeira, v. 7, n. 14, p. 75-86.
Wittgenstein, Ludwig. (1986). Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. de José A. Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
[1] Sangare Okapi é poeta moçambicano nascido em Maputo. É professor de Língua Portuguesa e autor de uma vasta obra de poesia, com tendência temática voltada à captura do ‘eu’ e do erótico nas suas múltiplas dimensões. Entre os seus livros destacam-se: Inventário de angústias ou apoteose do nada (Maputo: AEMO, 2005); Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo (Maputo: AEMO, 2007); Mafonematográfico também círculo abstracto (Maputo: AEMO, 2011) e Os poros da concha (Maputo: Cavalo do Mar, 2018). Sangare Okapi detém o Prémio Revelação FUNDAC – Rui de Noronha de 2002; o Prémio Revelação de Poesia – AEMO/ICA, de 2005; e é menção honrosa no Prémio José Craveirinha de 2008.
[2] Ronga é um grupo etno-linguístico conhecido como Tsonga, ou Tshwa-Ronga, que abrange três línguas e hábitos mutuamente inteligíveis, cujos povos encontram-se principalmente no sul do Rio Save, em Moçambique, nomeadamente Ronga, Changana e Tshwa. O Ronga (ou xizronga, xirhonga, xironga, shironga) é uma língua bantu predominantemente falada na Província e Cidade de Maputo e sedimenta toda uma cultura bantu própria.