Ouvia-os jactarem-se de suas ignomínias, e tanto mais se gloriavam quanto mais depravados eram. Assim, praticava o mal não só pelo deleite da acção, mas ainda para ser louvado. – Santo Agostinho
Mutiladas é a proposta em prosa do poeta e jornalista moçambicano Eduardo Quive (n. 1991), e antecedem-lhe os livros de poesia Lágrimas da vida sorriso da morte (Literatas, 2012) e Para onde foram os vivos (Alcance, 2022). Também co-organizou os volumes I e II da antologia Contos e crónicas para ler em casa (Literatas, 2020) e o livro de entrevistas O abismo aos pés – 25 escritores lusófonos respondem sobre a iminência do fim do mundo em 2020 (Literatas, 2020).
Publicado no primeiro semestre deste 2024, Mutiladas sai pela editora Catalogus. Composto por 101 páginas, o livro divide-se em dois cadernos de contos: i) Cor de sombra e ii) Outros caminhos. O primeiro caderno reúne os textos que ao longo dos anos Quive foi produzindo, e que por isso são a voz que conduz todo o espírito criativo do livro, e o segundo caderno, juntando-se às temáticas lá propostas no primeiro, surge como resultado de uma residência literária na qual o autor participou em Lisboa, em 2022. Os dois cadernos de Mutiladas têm liames que os ligam, numa unidade objectivo-criativa, mediante as imagens do realismo social que se depreendem dos contos, a exprimir a violência e as várias formas de sua presentificação no quotidiano humano, propriamente moçambicano, como sua razão de ser.
O narrador de Quive é o que Walter Benjamin denominou de “camponês sedentário”, aquele cujas narrativas que escreve ou conta encontra na terra, esse lebenswelt no qual está inserido como resultado fenoménico da matéria e experiência de seu quotidiano (Benjamin, 1987, p. 198). Por isso ouvimos-lhes o narrador e os personagens, com um domínio do vida pública, a narrar:
– Qualquer dia ainda nos saem as tripas. Veja como andamos aos solavancos no maldito camião.
– My Love – completou Alice.
Todos juntos. Abraçados. A união faz a força. Unidade. Solidariedade. Amor. My Love, quer dizer, o povo entregue à sua sorte, abraçado ao vento e solavancos num carro de caixa aberta (Quive, 2024, p. 18).
Daqui percebemos que o narrador aqui presente tem uma consciência do espaço e do tempo em que vive, de tal sorte que os problemas do seu meio não lhe escapam, invadem o seu universo diegético, como a condição das vias de comunicação degradadas, a falta de transporte condigno que há e as alternativas aventadas para responder a esse mal que não sendo somente do universo ficcional da oficina de Quive são também imagens que nos afrontam na nossa vida objectiva.
O narrador de Mutiladas, com frases curtas – que são orações na maioria simples – e límpidas – porque tendem a ser mais realistas na impressão de sentidos –, fala-nos da violência com um certo carácter de proximidade à terra, como quem se curvou para conhecê-la, como seu objecto de produção de alimento. Quive impregna no seu “narrador sedentário” uma visão de proximidade ao mundo-vivido, por isso que há um certo impacto emocional que se dissipa quando os seus personagens fictícios parecem lembrar-nos das pessoas comuns do nosso dia-a-dia, nossos vizinhos, nossos familiares, antigos professores, até nós mesmos, residentes na periferia da Grande Maputo e Matola, ou até nas grandes cidades deste vasto Moçambique.
Os dois cadernos de Mutiladas são atravessados pelas várias violências quotidianas. Se no caderno Cor de sombra a violência aporta-se a nós como um presente irrecusável, uma forma-de-vida que nos é lugar-comum, legando para o título Mutiladas algumas passagens de seus textos como do conto “Cláudia”, onde depois de assassinada é mutilada: “pernas, partes do tronco, um pano em que se viam a espreitar os fios de cabelo liso a varrer o chão e um líquido escuro e denso que jorrava. Eram partes de Cláudia divididas como em pedaços de frangos comprados a quilos na mercearia” (Quive, 2024, p. 55).
Já no segundo caderno, Outros caminhos, Quive parece tender a regressar a um certo passado, e com tons memoriais e às vezes nostálgicos e melancólicos dos aromas de infância, da guerra dos 16 anos em um passado que nos lembra o nascer da primeira república, a de Samora Machel, a que veio depois da independência do jugo colonial. Ocorre nesta segunda parte uma narrativa do ausente, do que já não é, do que não resistiu ao tempo, mesmo mantendo a forma de como a violência também havia, pois é no segundo caderno que encontramos o texto O cheiro das flores cuja passagem induz-nos a compreendermos que os mutilados são também produtos da nossa história de guerra civil, onde, os saídos dela: “A essa gente ficou-lhes o nome simbólico quanto realístico de ‘mutilados’. Mutilados no corpo e na alma” (Quive, 2024, p. 63).
Para o filósofo Giorgio Agamben, o poeta – no sentido lato do conceito – tem de ter a capacidade de deitar os olhos aos olhos do seu próprio tempo, a fim de lhe antever as antinomias, as contradições e ver-lhe com acuidade as trevas que lhe são próprias (Agamben, 2009, p. 62). Neste sentido, a sua criação tornar-se-á uma expressão das contradições do zeitgeist, o espírito de seu tempo, e como um contador de histórias deve expor o negativo da imagem do social. Sob tal óptica crítica, a obra Mutiladas constitui-se como uma cartografia da partilha do sensível que contamina o inconsciente estético de Quive com imagens e sentidos, explicitando que toda a produção artística, no plano de cultura, possui um carácter político latente e primordial, se atendida a categoria aristotélica do zoon politikon, ou animal político dito do humano.
Presentes na consciência colectiva quotidiana, os contos de Mutiladas pretendem ser uma demonstração das antinomias que agem sobre nossos demónios e que vêm dar-se sentido e consumar-se no acto do gnarus quiviano, não como o real mas sim como a embriaguez do real. Os contos aqui inscritos têm consigo a força de levar-nos a desvelar o dito real, constituindo-se como narrativas da metáfora do social que em sua tessitura radical e aproximada ao universo da arte acaba tornando-se violentamente explícito. O conto Destina apresenta-nos uma leitura sobre o mundo da violência nas relações laborais entre o patronato e os trabalhadores que perpassa as análises puramente de classes sociais, levando-nos a relevar o factor humano que é marcado pela desigualdade nas relações, conferindo outras lógicas, conflituantes e desumanas, à dialéctica patrão-trabalhador. Vejamos, por exemplo, porque a personagem Destina trabalha num restaurante na cidade, quando a patroa subentende que atendeu mal a um cliente insulta-a: “«Aquela burra não entende nada, nada»” (Quive, 2024, p. 44), e como fosse pouco, o cliente subentendido insultado terá a refeição de borla e o pagamento será extraído do salário da trabalhadora: “«O prato do senhor está na tua conta. Foi uma picanha, com batatas e salada de camarão. Tomou, também, um sumo natural com todas as misturas sugeridas. Ficou satisfeito com o atendimento. Foi um bom trabalho que fizeste ao restaurante.»” (Quive, 2024, p. 45).
A narrativa de Quive tende a ter vínculos fortes com a realidade de modo tão pictórico. Assim como faz Suleiman Cassamo, Mutiladas explora o drama social a partir de suas estruturas fundantes, tanto de seus fundamentos tragedíacos como dos sociais; e tal como Luís Bernardo Honwana o livro explicita estas estruturas fundantes colocando de forma límpida a realidade como facto ficcionado e a indicando como consequência de escolhas e acções impelidas pelo contexto em que as personagens experimentam a violência de forma conatural.
O texto Punição, cuja ambiência da narrativa é dada numa escola, mostra como a violência faz parte do quotidiano escolar: “…um menino estava de joelhos sobre pedrinhas, enquanto o professor, normalmente, dava a sua aula” (Quive, 2024, p. 76, destaque nosso), mais abaixo o narrador deixa-nos outra imagem da violência nesse contexto: “O professor, que se apercebe do que o menino tenta fazer, vira-se com rapidez de quem tem prática no gesto e dá com uma varra sobre o corpo do aluno” (idem).
Estas formas sedimentadas de violência, normalizadas, onde os risos mascaram o lado desumanizante das mesmas, culmina com a forja na oficina escolar de indivíduos cujas condutas são uma réplica de como a violência recaiu sobre eles e moldou a sua visão normal de mundo. De tal ambiente, psicologicamente degradante, vemos que:
Algumas crianças, com o passar do tempo, já se riam quando uma outra caía na desgraça do professor, já saíam a correr como numa competição de atletismo, como se fossem em busca da melhor nota num exame, para tirar ramos maiores que a sua altura, preparando a vara da boa educação, como um escultor talha a madeira, para dar ao sô professor e que este tivesse toda a sua fúria satisfeita no corpo do indisciplinado, do atrasado, do que erra nas contas, do que gagueja quando lê, do que se ria com alguma coisa engraçada, daquele que se distraísse com os pássaros… (Quiva, 2024, p. 78-79).
Deste contexto assistimos uma narrativa que visa ser crítica à banalização do mal, como que a nos lembrar os tratados da filósofa judia Hannah Arendt que, tendo experimentado os horrores do holocausto nazi-fascista, estudou-os em As origens do totalitarismo, depondo-se contra esta tendência na qual os Homens vão aos profundos recônditos do inconsciente despertar o mal absoluto uns contra os outros, diga-se “absoluto, porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis” (Arendt, 2012, p.13).
E porque as lógicas sobre as quais se funda a violência do professor são incompreensíveis nos limites da simples razão, Quive conduz-nos à compreensão de que foi resultado da violência praticada na escola que:
Roberto morreu achado numa machamba onde roubou cana-doce. Estava de uniforme, mas há muito que não entrava na sala, nem cruzava o recinto da escola. Paulo foi para África do Sul, voltou mais tarde deportado, morrera posteriormente de overdose. (…) Hélder foi para a tropa, desmobilizou e passou a cafetão e vendedor de droga, seus principais clientes eram os miúdos da escola onde não voltou a transpor o portão, depois de violentado pelo professor. (…) Angélica, tão doce quanto pôde, andou nas barracas do bairro, onde distribuiu prazer entre o álcool, ouvindo e dançando as músicas que contavam as histórias das mulheres desgraçadas, que não mereciam o amor e o respeito (…) Marcolino, esse até se deu bem, suportou a tortura, passou para escola técnica, foi ao treino e tornou-se alfandegário (…) Tem as mulheres que quer, a que escolheu para guardar em casa, espanca-a sempre que lhe apetece (Quive, 2024, p. 80-82).
Esta limpidez cristalina com que nos caem as imagens aqui descritas em Mutiladas possui como efeito último a afirmação de que o ciclo de violência está presente nas estruturas do subconsciente, persistindo até mesmo naqueles cuja violência na escola foi suportada até que alcançassem as glórias de tanto esforço, porém vez e outra usam da violência para impor o seu poder sobre os mais fracos porque, afinal, é inegável que não se sai o mesmo ser desse ciclo vicioso e reza o vulgo: violência gera violência.
Os personagens Roberto, Hélder, Angélica e Marcolino são-nos bastante próximos. Quem não conhece alguém que tenha fugido da escola, por medo da violência que caracteriza(va) as relações professor-aluno? Quem não viu alguma Angélica que tenha desistido da escola para o lar ou então seguir a má-vida, porque a violência da escola era insuportável? Quantos de nós não assistem de perto a violência doméstica e o feminicídio cujas televisões não param de nos jogar na cara que nos são actos próximos, fazem parte do nosso mundo? Quem não pautou, nalgumas vezes, pela agressão quando achou que a retórica da violência fosse suficientemente legítima? Ora estas e mais questões só podem assim ser expostas no universo da narrativa mediante este falso distanciamento do mundo objectivo que é assumido nas artes, como simbólica representação do real, porque se Pessoa nos ensina que “…na arte não há desilusão, porque a ilusão foi admitida desde o princípio” (Pessoa, 2008, p. 370), em Quive compreendemos que é capaz de ser dissimulada a condição já habituada de aceitar como normal a violência por meio dos recursos narrativos.
E o realismo aqui adoptado, por isso, pretende expressar o real, os contos de Quive conseguem, sem bastante esforço, sem tanto mascarar, dar-nos tais imagens, de tal sorte que o consumo de recortes como:
Dois homens surgiram por detrás, tiraram-lhe a bolsa. Tentou, em vão, assustada, mover os pés para correr. Levou rasteira, deitou-se de trás e suspirou de alívio. O seu corpo estava cansado. A sua alma desgastada. A cabeça perdia os sentidos. Os homens fizeram o que lhes apeteceu com o seu corpo. Não que fosse preciso, mas tiraram a sua calcinha, meteram na boca, rasgaram a saia. O sutiã, porém, tiraram com cuidado. Lambuzaram-se até à exaustão (Quive, 2024, p. 47)
Tal imagem narrativa constitui-se como uma intranquila fenomenologia do obsceno, do horrível, da violência, garantida pela proximidade com o mundo comum que nas mais vezes nos chega por via dos canais de informação e, desta forma, legitimando uma escrita de inclusão máxima da realidade. E aqui, ainda que as imagens não se quisessem apresentar como próximas ao mundo-vivido, quisessem manter o distanciamento que a arte pretende, com recurso ao símbolo, à metáfora, torna-se irrealizável tal façanha porque, indissimuláveis as imagens do real, porque ou a arte imita a vida ou esta àquela outra, tudo colide.
Embora tenhamos que assumir que a arte é sim uma simulação, lavados todos os artifícios do artista a criação aporta-se ao seu objecto de análise no contexto social. E esta aceitação pela maioria de narrativas cujo cunho de abordagem é a realidade tem por defesa a ideia da dissimulação, que coloca um distanciamento que finge uma aproximação, como se fôssemos atraídos por um real cuja dureza não conseguimos digerir a não ser como produto da arte.
A “transfiguração do lugar-comum”, a usar do conceito do filósofo e crítico de arte Arthur Danto, em Mutiladas, é um acto que faz reviver a forma ou o sentido como a violência que interessa o escritor retirar do seu espaço comum, transita para o lugar e função material para que seja percebida em outros termos através da narração, mas que é a prosa do mundo apossado pela banalidade do mal. Essa transfiguração envolve a presença dissimulada de seres que, vistos como normais, situações tidas como comuns, culminam em mortes e perpetuação da violência, como nos conduz a leitura do conto Cláudia no último parágrafo em que se procura as razões de morte da Cláudia, mutilada:
Dias depois, reconheci Xipoco na televisão a explicar tudo o que aconteceu. «ela bebeu nossa bebida, comeu nossa comida, dançou nossa música, aceitou nós li pegarmos, mas não aceitou fazer sexo connosco, só queria nos chular, só, então nós não gostamos.» E Faquito, que estava algemado, também falou, com aquela timidez dele «nós estávamos a brincar» (Quive, 2024, p. 55).
O escritor também, para além de narrar, mostra-nos até que ponto o mal nos é comum, chegamos ao nível de, em um ambiente de festa, que se traduziria em alegria, transpor o luto, de uma forma tão fria que, entretanto, para os actores não passou de uma simples brincadeira.
Para além de os textos de Mutiladas irem até o inferno das relações sociais eles são também relicários e memorialistas. Como observou Le Goff, o uso da memória assume-me como propriedade de conservar certas informações do consciente colectivo (1990: 423), então sob tais funções psíquicas Quive actualiza impressões ou informações passadas, aquelas que acima dissemos que tendiam à veia nostálgica da narrativa ou ao puro memorialismo, daí que há, no segundo caderno de Mutiladas, uma persistência de um passado já inexistente, como os passeios escolares na escola pública, em cuja imagem o narrador nos lembra que “Era o passeio para Mbuzini, para as celebrações de 19 de Outubro, a morte do Presidente Samora Machel”, lembra-nos, ainda, da esquecida Geração 8 de Março, em que na canção os alunos daquela era diziam: “nós somos continuadores da revolução moçambicana”. Tais textos marcam a transição de um tempo, de uma realidade social à outra, mostram a mudança de nossa história como nação.
Diríamos, em jeito de considerações finais sobre este Mutiladas que este é um livro sobre a condição da violência social, é uma exposição sobre o obscuro rosto do nosso tempo e espaço, onde as mulheres, crianças, jovens e idosos estão mergulhados numa teia de relações cujos liames são a morbidez do medo que a violência antecipa como forma de ser comum entre os Homens. E escrever sobre este tempo sombrio, onde as violações sexuais, a amputação, o feminicídio, as agressões no meio laboral são conaturais, implica ver, não só o obscuro e trevoso, mas escrever, como Quive o faz, como uma actividade que visa neutralizar as luzes que nos possam conduzir à negação, não num sentido de deitar tapete abaixo o mal, mas consciente e em actividade o mal que sendo conatural deverá levar-nos em direcção às melhores e humanas relações sociais.
Referências bibliográficas
Agamben, Giorgio. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos.
Arendt, Hannah. (2012). As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das letras.
Le Goff, Jacques. (1990). História e memória. Campinas: UNICAMP.
Pessoa, Fernando. (2008). Livro do Desassossego /por Vicente Guedes e Bernardo Soares. Edição de Teresa Sobral Cunha. Lisboa: Relógio d’Água.
Quive, Eduardo. (2024). Mutiladas. Maputo: Catalogus.
Por Daúde Amade
Maputo, 12/05/2024