Quinta-feira, Novembro 21

As oscilações afectivas da saudade em “mundo blue”, de Pedro Pereira Lopes

“De passagem, notemos o poder de um adjectivo, desde que o liguemos à vida. A vida desagradável, o ser desagradável, assinala um universo. É mais que uma coloração que se estende sobre as coisas, são as próprias coisas que se cristalizam em tristezas, em saudades, em nostalgias”. – Bachelard, A poética do espaço

1. O termo saudade é apenas da língua portuguesa e com difíceis equivalências na tradução para outras línguas. A arqueologia etimológica do termo saudade leva-nos a encontrar suas raízes no latim solitatem, que na sua forma primitiva advinda do galaico-português, a arcaica língua lusa, escrevia-se soidade ou suidade, para expressar a ideia de solidão, isolamento provocado pela falta de alguém ou de alguma coisa. O termo soidade ou suidade é referenciado, pela primeira vez, segundo Artur Manso, em textos clássicos da poesia portuguesa, as tão conhecidas Cantigas d’amigo do século XIII (Manso, 2017, p.89).

Nas Cantigas d’amigo, o conceito saudade aparece ligado a um estado de espírito em que o eu-lírico vê sua memória afectada por um passado que se quer renovar no presente. Esta carga afectiva saudosa é, ainda, vista naqueles em que, afastados de seus amados por qual seja a eventualidade, ficam retidos presentemente nos limites do espaço-tempo passado e reféns à sua condição e desejo de projectar que tal se actualize no futuro. A saudade, nesses termos, seria uma memória de alguém, algo ou algum lugar perdido, que no entanto o desejo tende a arrastar-nos para lá, presentificando-se. No dicionário, a saudade é descrita como um sentimento de banzo, melancólico, de incompletude e nostalgia (Houaiss, 2008, p.746).

A saudade é um sentimento vinculado à memória e mostra-se em situações como (i) privação de presença de alguém ou algo; (ii) afastamento ou perda de um lugar ou alguma coisa; (iii) ausência de determinadas experiências e prazeres já vividos e considerados por quem padece de saudade como um bem desejável de se (re)vivenciar. Nisto, engendrada por um genuíno sofrimento da alma, a saudade tornou-se, para uma filosofia especulativa, o corolário que relaciona a condição humana com o desvelamento da consciência de sua temporalidade, finitude e o infinito diante de si. E é sobre tais signos que a saudade entra nos meandros da filosofia e da literatura de língua portuguesa, forjando-se, então, uma espécie de fenomenologia da saudade que é compreendida, nestes domínios das ciências do espírito, pelo “amor de um objecto ausente (…), desejo de vê‐lo ou recuperá‐lo e a dor da ausência que torna o ser saudoso como que insensível a tudo o que o rodeia e o faz sentir‐se só mesmo no meio da sociedade em que porventura, viva ou se encontre” (Teixeira, 2006, p. 26).

A saudade, dita e experimentada dessa maneira – contendo em si a melancolia, a lembrança, o amor, a nostalgia e acendido o desejo futuro de reviver no presente o vivido –, é só encontrada no quadro de uma ontologia adstrita ao espaço cuja linguagem fundamenta-se em português. Há, em outros idiomas, palavras aproximadas e explicativas em parte ao fenómeno da saudade, mas nenhuma delas aspira a densidade e profundidade que se dissipa quando a evocação do que se experimenta vem enunciado pelo termo saudade. Dizemos, em tentativa de referir ao fenómeno da saudade noutros idiomas, nostalgie (grego), souvenir (francês), sehnsucht (alemão), desiderium (latim), soledad (espanhol), remembrance (inglês), kuxuva (xichangana). Porém, estas palavras não sobejam à simbologia que a palavra saudade exala. O sehnsucht dos alemães é enquanto sensação de estar preso só às pessoas com quem se conviveu; o souvenir dos franceses não só se refere ao sentimento de falta dos ente-queridos, mas também vincula-se às antipáticas energias que temos das coisas passadas; a nostalgia dos gregos vivifica-se a partir do vazio de alma ao se estar distante da pátria amada; o remembrance dos ingleses é mesmo uma evocação, uma recordação geral de tudo o quanto foi, podendo ser com ou sem a presença do amor; e o kuxuva dos changanas é evocação da memória dos lugares antes habitados ou das gentes antes convividas.

Mas o que distingue a saudade dessas energias afectivas acima descritas? Não que a saudade seja totalmente distinta em si de cada uma das emoções expressas pelos termos doutros idiomas. O facto é que ela é um pouco mais do que cada uma dessas palavras, isoladas e unicamente, tendem a transmitir. A saudade é mais do que a dor de sentir só a perda de pessoas, mais do que só ter o amado perdido, mais do que unicamente não estar na pátria ou a simples evocação do passado. A saudade não é solidão, não é nostalgia ou lembrança, não é dor ou suavidade. Mas é também solidão, nostalgia e lembrança, dor e leveza. É lembrança de algo que não mais se tem, mas se quer reaver. Mas não só, é a dor gostosa da ausência, uma tonalidade melancólica suave que é tão-só experimentada por quem sente falta de alguém ou algo (Pereira Junior, 2014, p. 89-90).

Daqui fica-nos então a percepção de que a saudade é lembrança de alguma coisa ou alguém com desejo dela no presente, que então a faz viva como já foi. E não sendo, porque não ocupa espaço físico, ela torna-se, ao mesmo tempo, nostalgia, melancolia, dor e lembrança. A saudade é atravessada por outras experiências afectivas e que chegam até a revertê-la ou a contradizê-la. Afinal, como pode nos Homens haver uma dor gostosa ou uma melancolia suave?

Pedro Pereira Lopes

2. Ora, a saudade, essa dor gostosa ou melancolia suave, com que imagem nos atinge em “mundo blue”, de Pedro Pereira Lopes[1]? A imagem da saudade aporta-se até nós desde o momento que temos em mãos o livro. O título “mundo blue (ou o poema em quarentena)”, na capa, coloca-nos diante de um exercício criativo do desvelamento da fenomenologia da saudade e da solitude, aqui vistas como o motor introspectivo do eu-lírico, porque trata-se, conforme o subtítulo do livro, de um “poema em quarentena”, esta que representa a experiência condicionada e forçada de isolamento humano para com os outros, seus semelhantes, ou lugares. Ao que nos sugere o conceito “mundo”, ele é a imagem da condição humana no espaço de vivências interrelacionais e interpessoais do eu-lírico, que acaba sendo uma representação do quotidiano humano. O termo em inglês blue do título, que é o tom azul, associa-se, na psicologia das cores, à expressão de tristeza, saudade, melancolia, solitude e perda, e tais tonalidades afectivas são legitimadas ao longo do livro enquanto germes do ser-no-mundo. O livro “mundo blue” é a atitude poética de atravessar em verso a saudade e toda a cadeia de emoções amplificadas a ela no fenómeno da existência.

Este livro é composto por dois cadernos: à beira da ilha choviam meteoritos no mar e névoa seca. No primeiro caderno, composto por dezasseis poemas, o eu-lírico revisita, através da ideia da saudade como ilha na qual está preso às experiências do passado, agora chamadas como recordações no presente. Redesenha lugares, seus seres e afectos de refúgio e de reencontro com o que foi perdido, como que usando da plasticidade da imaginação pudesse vencer os limites das dores cristalizadas no seu ser presente num presente com presença do bem que houve e que ficou em saudades; no segundo caderno, com vinte e três poemas, e numa espécie de back to the future para arquitectar a essência sublime das coisas que lhe punham ataráxico outrora, procura então pela essência sublime das coisas da vida, e, ao habitus dos matemáticos na crença em fórmulas, na crença de que esta essência repousa infalivelmente aquém do presente que se mostra uma névoa seca, embaça e esboroa a vida com seu ar esfumado e desvela em versos as saudades do futuro.

Tal como Dante Alighieri na Divina Comédia precisou do poeta latino Virgílio e de sua musa-platónica Beatriz, seres moralmente superiores a seu ver, para lhe conduzirem em sua trajectória pelos ciclos de vida pós-morte: Inferno, Purgatório e Paraíso, Pedro Pereira Lopes, nesse mundo que lhe é blue, elegeu seus poetas – na acepção mais lato senso do termo – os quais lhe orientam nessa empreitada. Ao que nos parece, esses artífices detêm o mapeamento axiológico da existência, podendo por isso ser os legítimos guias do poeta. Acompanham-lhe nomes como Eduardo White, Sangare Okapi, Álvaro Taruma, Clarice Lispector, Omar Khayyam, Luis Sepúlveda, Bukowski, Chico António e Jean-Baptist Grenouille, personagem do livro O Perfume, de Patrick Suskind, segurando-lhe pela mão e conduzindo seus versos. Para além dessas referências do mundo das artes, o eu-poeta do “mundo blue” tem também a sua Beatriz. Anda uma musa sem nome mas cheia de presença à espreita nos versos do poeta. É ela que em meio à saudade dela, do vivido e dos espaços ainda subsiste como força vital para que o poeta insista viver um presente sem referências emocionais coloridas.

Em “mundo blue”, jamais perceberemos o que é a saudade se não nos darmos conta de que ela se forma e coexiste com a própria percepção do presente. A alternativa é mais ou menos esta: ou o presente passa sem deixar o seu peso, então vazio, ou o presente se divide incessantemente em dois gumes arrastando-se em direcção ao passado e em direcção ao futuro. Recorrentemente, no quotidiano, só estes “presentes” nos interessam e é através deles que percepcionamos o peso qualitativo da condição humana afectada pela saudade. E por isso algo persuade-nos a pensar que, quando a saudade surge, ela é algo que sucede à percepção. Mas enganamo-nos. A saudade não é uma simples percepção já com as forças vencidas, ela multiplica em cada momento de percepção, desenvolve-se junto a ela e vivifica-lhe. Vivemos acompanhados por este passado original que, ao que nos alude o poeta:

como o silêncio

a saudade nos acomete à sua própria língua.

(Lopes, 2020, p. 32)

E sem o entendimento da língua com que se nos comunica a saudade jamais seríamos capazes de ir buscar alguma coisa que tenha no passado ficado, seria como se nós não tivéssemos estado nele desde sempre. Essa necessidade arqueológica de visitar os hábitos do passado, em “mundo blue”, eleva a saudade dando-lhe duas possibilidades de ser lida: [1] como movimento regressivo à casa onde a vida era puramente vivida e [2] como movimento progressivo de sentir a partir dos resquícios da saudade como se construirá o futuro.

Contudo, seria um absurdo limitar a nossa leitura do fenómeno da saudade, tal como apontam as duas possibilidades acima, como sendo meras construções intelectuais do poeta. Não se trata de um «modus literário», isso quer dizer basicamente que a saudade tem origem na vida vivida, que ela só atravessa os portões do intelecto à essa vida-outra que é um pressentimento literário. Ou, se quisermos assim entender, no contexto, essa vida-outra aqui referida é o passado presentificado que é saudade pura que converte o “mundo” em “blue”.

A seguir a vereda aberta a partir da primeira “chave” de leitura: a saudade como movimento regressivo à casa onde a vida era puramente vivida, consideraremos que, em nosso modo de experienciar o mundo, não são apenas as saudades, mas também os esquecimentos que estão “armazenados”. Nosso inconsciente está “armazenado”. Nós somos a morada da saudade. E quando sentimos saudades das coisas, dos lugares, dos tempos idos e de entes-queridos, aprendemos, em uma espécie de didáctica das emoções, a “habitar” em nós próprios. E em “mundo blue”, então, vemos que as figurações da saudade estão em nós como nós estamos nelas:

trabalhei o dia todo – a faina não trunca

                                             o sentimento?

surgias-me em cada verso e punha-me logo a rir “como

um louco ao fim da tarde”

guardei o riso para outro tempo

rir sozinho é ruína de graça

tiraram-me outra vez um dos gomos

    do carro – ao malfeitor fiz feitiços

não eras pote de vida – afinal

eras fonte

(Lopes, 2020, p. 19).

O poema remete à compenetração entre o eu-lírico e a saudade. Ambos misturam-se, tornando-se um só, sujeito com saudade e saudade com sujeito. Como exprimem os primeiros versos: “surgias-me em cada verso e punha-me logo a rir ‘como/ um louco ao fim da tarde’”, há aqui um sujeito com saudade. É o sujeito que ri ao rememorar a sua amada. Então aqui vemos que nada foi esquecido, suas cinzas reverberam no espaço da memória do sujeito poético. Joaquim Carvalho diria que “a todo ser consciente e temporal é inerente à possibilidade de estabelecer uma relação valorativa como o estado em que se encontra ou a situação que anteriormente viveu” (Carvalho apud Teixeira, 2008, p. 104).

E desse modo, numa selecção valorativa entre o presente e o passado, o presente que se devia encher de si, significativamente, do “trabalho do dia todo”, é invadido por imagens do passado; e a “faina”, esse trabalho que é a configuração essencial do homo faber, servindo de passatempo ante o tédio, nostalgia, saudade e melancolia, descobre-se que “não trunca o sentimento” de certeza dos momentos vividos agora evocados em memória saudosa. E desgovernado pela interminável rememoração, o eu-lírico acaba entrando na legitimação dialéctica da saudade com sujeito. Como afinal conclui, diante da efusiva presença constante de sua amada, a importância do riso outrora com ela compartilhado, a frustração presente diante de uma perda material (os gomos do carro) e a mudança de percepção em relação a ela (não eras pote de vida, eras fonte) é o que dá animus a seus dias vazios de presente e cheios desse passado.

Pedro Pereira Lopes

Em “mundo blue”, a saudade aparece sempre ao Homem com intenção de fazer vingar o desejo de ser lembrada, como o que é indigno de se tornar passado, pois é o mais essencialmente presente:

e o problema é já mais surdo e oprimente

como se a saudade fosse perdendo

a modéstia e o bom-feitio

(Lopes, 2020, p. 29).

Mas por que nos sossega, a par desta perda de sua modéstia e seu bom-feitio, a felicidade dolorosa de habitar na saudade? É que alguma coisa mais tenha faltado na realidade passada, não a vivemos o bastante para que ainda lá estivéssemos. E agora é pela memória que podemos reafirmar a ligação antes havida. E porque é paraíso perdido, dói-nos, mas também porque é memória boa, perpassam em nós as sombras de felicidade havida. Tais factos povoam nossa memória. Tanto queríamos, para além das memórias remexidas, outra vez dar vida a nossas impressões soterradas pelo presente e as experiências que faziam crer na felicidade. E o poeta admite, no texto de abertura do primeiro caderno:

mas o sossego é de um acre difícil

e lemos nos últimos versos do mesmo poema:

temo a saudade

esta torpe carcereira

(Lopes, 2020, p. 17).

Então, se mantivermos aceso o medo da saudade, sem superarmos a colecção das lembranças do vivido, os momentos perdidos na carcereira jamais serão libertos para a possibilidade do presente, por parte. Porém, para o eu-lírico do “mundo blue”, o límpido é o esvaziamento do presente. Mas a iluminura irradiante deste esvaziamento é ao mesmo tempo a sua própria escuridão, pois o passado está impossibilitado de se materializar.Parte superior do formulário Por esse motivo, as imagens poéticas da saudade aqui aparecem com o cuidado de não quebrar os vínculos de solidariedade entre a memória e a imaginação, pretendendo atingir cargas emotivas que obriguem à elasticidade psicológica de uma imagem que nos demova de um presente sem presença e nem acto a um passado que se presentifica metafisicamente.

O poeta questiona-se:

(quantas vezes, amor, já te esqueci,/ para mais doidamente me

                     lembrar./ mais doidamente me lembrar de ti?)

(Lopes, 2020, p. 31).

E se questionada a finalidade última desse precioso esquecer para com intensidade melhor lembrar, aqui em “mundo blue”, diríamos: é a manutenção galvanizadora da saudade; aqui, a saudade serve de concha onde habita o vivente, a saudade veicula o passado puro. Tão-só os pensamentos e as experiências julgam e condenam os valores humanos. Os pensamentos e experiências do passado ganham em relação às do presente porque são puras e inevitáveis na sua contingência. Pertencem aos valores que marcam o Homem em sua ligação profunda com a vida-vivida.

Em “mundo blue”, as saudades têm o privilégio de poder ensinar a valorização e estatização dos momentos, os bons momentos e negação dos maus. Podemos entender essa pedagogia das saudades – a ideia de ensinar-nos a valorização e estatização dos momentos – como manifestação de um passado que reconhece que não devia ter passado, pelo que o eu-lírico de Lopes admite:

meu erro foi ter-te deixado cruzar a polpa do cacimbo

            e hoje revisito um misto de princípios arraigados

desconhecedores da justeza da arte

engulo o limbo somente finas fagulhas

interpostas entre o passado e a nova alba

guardam o selo da nossa linguagem a cadência

                                              do nosso pulso

tenho medo do incrível e até da memória

quando estávamos à beira da ilha: choviam meteoritos

                                                                  no mar

por lá ficámos presos – uma vez – na ilha de coetze

e nos quisemos como o fazem o escritor e a sua morte

mistério é ter saudade de afoguear-me a luz

                                      laranja de um semáforo

(Lopes, 2020, p. 26)

Lopes ensina-nos, enfim, na consequência advinda do desligamento da presença que serve de manutenção dos afectos, que a necessidade de deixar partir não é consistente em si, por isso uma “revisitação de um misto de princípios” que acusam que o ausente ainda é firmemente presente em pensamentos e memórias, e não cabendo aí quer-se actualizado em corpo no espaço. Torna-se insuperável o “cruzar a polpa do cacimbo” quando têm certeza os amantes que guardam em si a linguagem do vínculo que antes os ligava enquanto tais.

Tal como em “mundo blue” se mostra, o amor é força harmonizadora dos estados de alma que, conquanto haja uma “chuva de meteoritos no mar”, condição necessária para deixar em desassossego um ser humano. Porém já que os amantes têm-se um ao outro, tudo se tranquiliza porque a energia interna que compartilham é cega para os males externos, prevalecendo a ideia do puro e sublimado bem que é a pessoa e aquele locus no qual estão abrigados. Isto nos aparece em “mundo blue” como Platão ensinou: “o Amor se dirige para a beleza a qual outra coisa não é senão o anúncio e aparência do bem, logo, desejo do bem” (Abbagnano, 2007, p. 37).

A segunda chave de leitura de “mundo blue”, como anunciado acima, é de que a saudade aparece como movimento progressivo de sentir a partir de seus resquícios como se construirá o futuro. Essa transição do passado ao futuro sob o signo da saudade dá-se através de uma transferência, tantas vezes ténue e subtil, do plano da vida-vivida permanentemente não-realizada e, por isso, passada, para o plano da necessidade de realizar-se, então, abertura aos devaneios de um futuro. Apercebemo-nos disso nestes versos sobre o amor e a musa presos numa estação do passado. Onde este rememorar o passado e projectá-lo para o futuro:

é sonhar uma promessa para um ciclo

que ainda não existe dentro das

convicções humanas

(Lopes, 2020, p. 31)

mas ainda assim o poeta abre-se a este ciclo, como que a revogar a necessidade de estar preso nos intervalos de tempo passado, arrastando-se em direcção ao futuro, como possibilidade de refazer a vida, possibilidade de dar cor ao futuro, bem como já foi no passado. Por isso, daqui em diante, já não é do passado a saudade, mas um futurar da saudade. Consideremos tal hipótese, por exemplo, a partir dos versos nos quais o poeta diz:

tenho saudades do futuro

sou homem com saudades de mulher sem cais

deverei falar aos deuses da minha saudade?

o porvir está à meia-luz

(Lopes, 2020, p. 25).

Nestes versos, o processo é claro: o eu-lírico já teve perdas e partidas de amor, e espera, no futuro, uma mulher sem cais, sem partidas, que não lhe abandone. Mas a relação entre a mulher que partiu: “meu erro foi ter-te deixado cruzar a polpa do cacimbo” (p.26), e a do porvir: “mulher sem cais”, é uma espécie de negação da repetição do passado, onde a saudade até pouco tempo aparecia como sombra do poeta que jamais devia ter deixado sumir ante o seu corpo posto que caminha em pleno dia ensolarado. A mulher sem cais, que o cais é aqui, então, um locus de partidas, despedidas e distanciamentos, cujo porvir está à meia-luz, ou seja, próximo, faz-se anseio e saudade do futuro.

A essência da saudade do futuro, o pré-sentimento, anula os intervalos que dividem o poeta daquele instante originário onde há vínculos com a vida puramente vivida, o passado. A distinção entre o sentimento e o pré-sentimento orienta-nos, nos bastidores de “mundo blue”, a falar do futuro que se aporta sob forma de destino originado no presente sensível. As imagens que formam a matéria do futuro saudoso colocam o eu-lírico em contacto com o paraíso perdido, acendendo a memória e as formas de vida que o representam. Quem habita as saudades do futuro não é propriamente o poeta que nele se insinua, mas os tempos-vir-a-ser que o poeta descobre em si mesmo:

há muito que desejo olhar para

fora. negar a ruína dos dias

demorar os olhos colados à janela

talvez pôr-me a voar sem órbita

com o sol a enroscar-se na imaginação

ao som de um livro de basho

olhar também como quem

tacteia o horizonte

ver como tudo se confunde

olhar para fora

de dentro de mim

(Lopes, 2020, p. 46).

 Em maior número, os poemas de “mundo blue” resultam da desarmonia que se evoca nas ocasiões da bifurcação entre o passado em si mesmo e o presente da percepção. O filósofo português Afonso Botelho, em suas reflexões distingue estas duas bifurcações, indicando que enquanto a saudade dada pelo signo do passado é sentimento, é laço de comunidade dos seres que torna comum certos momentos do ser e faz o presente o passado, o pré‐sentimento, marca do presente da percepção, é um acto profético dado no presente perante o futuro e o destino, fazendo‐o nascer de um presente sensível, permitindo que a individualidade inunde as divisões infinitas do tempo (Botelho apud Teixeira, 1997, p. 242).

A saudade aberta pelo presente da percepção, em “mundo blue”, como uma profética necessidade de construir experiências para atribui-las ao futuro, projecta-se como um desejo de quebrar a casca do passado que prende o poeta e pôr-se-lhe a ver as coisas tão sonhadas de fora; é um manifesto ante a descoloração do presente puro, que é resto de ruína dos dias passados, atribuindo-lhe sentido a partir da sensibilidade que pré-sente e, por isso, faz-se esperançosa pelo devir como o que há de mais humano. Por isso, como seu único panfleto a erguer diante da revisitação constante do passado que se actualiza em memória no presente, cujas…

emoções são estilhaços de noite velha

a esperança finge ser cautela

ou engano de perspectiva:

só me resta uma cansada força

(Lopes, 2020, p. 49)

ou seja, perante o vigor do passado, essas emoções que são estilhaços, então, cortantes, fazendo o presente sangrar as feridas da vida puramente vivida, o poeta encontra no signo da esperança a possibilidade de suturar o passado, ainda que seja em pensamentos. Eis o que nos faz pensar na saudade aqui projectada como movimento progressivo de sentir os resquícios do passado como porta de acesso ao futuro como contingência, porque, como nos segreda o poeta, só lhe restou uma cansada força de que a saudade do futuro de materialize.

Destas duas chaves: a saudade como movimento regressivo e a saudade como movimento progressivo, ao nosso ver, resultou, no livro “mundo blue”: a fragmentação interna do poeta, moldada em termos que enunciam na fenomenologia da saudade, a relação entre o passado vivido e a consciência pura do presente, ou entre o sentir e o pensar, e a dor da memória e a dor do pré-sentir que sempre anula toda a inocência do sentir e mascara o presente, e depois a experiência de se viver sem que realmente seja a vida vivida, e a aporia que tudo isto é até a aceitação de que só restou ao poeta uma cansada força, apenas fagulhas de esperança, sem nunca ser desistência ou descaminho, porque neste lugar da memória pura, nesta ampulheta dos tempos-vir-a-ser, a todos só resta uma cansada força no final.

Neste ensaio quisemos dar uma experiência de como o conceito saudade pode configurar um modo de existência, agradável ou desagradável, do devaneio do eu-lírico que é movido e imobilizado entre os cantos do passado e, às vezes, do futuro. No passado, como vimos, em “mundo blue” fomos dados a habitar, junto ao poeta, um mundo usado, já gasto e descolorido, todo ele memorado; e no futuro, acessado pelo pré-sentimento, transportou-se as necessidades da vida puramente vivida, a passada, à necessidade de satisfação de presenças, afectos, lugares e amores através da repetição futura do passado esperançado. Das duas chaves de leitura de “mundo blue”, efectivamente, notemos o poder que o adjectivo saudade carrega, desde que, num mundo cuja ficção existencial se dá em língua portuguesa, liga-se à vida. Este adjectivo estende-se, como sombra, sobre as coisas, tomando-as por completo como suas, enchendo-as de si, assinalando um modo de estar no mundo que é de sua ordem, a do adjectivo saudade sobre as coisas em si.

Referências bibliográficas

Abbagnano, N. (2007). Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins fontes.

Houaiss, A. (2008). Dicionário Houaiss: sinônimos e antônimos. 2ª Ed. São Paulo: Publifolha.

Lopes, P.P. (2020). Mundo blue (ou o poema em quarentena). Maputo: Gala-gala edições.

Manso, A. (2017). Do sentimento anti-saudade e anti-saudosismo. In: Teixeira, A.B.; Natário, M.C.; Epifânio, R. (Coord.). Sobre a saudade: V Coloquio Luso-Galaico. 1ª ed. Sintra: Zéfiro.

Pereira Junior, L. C. (2014). Mitos da língua: o caso da palavra “saudade”. International Studies on Law and Education, CEMOrOc-Feusp / IJI-Univiversidade do Porto, p.89-92.

Teixeira, A. B. (2008). O essencial sobre A filosofia portuguesa (séculos XIX e XX). Lisboa: Imprensa Nacional.

___________. (1997). Ética, Filosofia e Religião. Évora: Pendor.

___________. (2006). A filosofia da saudade. Matosinhos: Quidnov.

[1] Pedro Pereira Lopes é professor universitário, escritor, poeta e editor moçambicano, nascido na Zambézia, em 1987. É autor, dentre tantos livros, de O mundo que iremos gaguejar de cor (contos, 2017), mundo grave (romance, 2017), mundo blue (ou o poema em querentena) (poesia, 2020) e O livro do homem líquido (micro-contos, 2021). É detentor dos prémios Maria Odete de Jesus 2016, Prémio Literário INCM/ Eugénio Lisboa 2017 e Prémio Bunkyo de Literatura 2019.

Por Daúde Amade

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FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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