Quinta-feira, Novembro 21

 

“Um psicólogo do mito deverá, pois, esforçar-se por reencontrar coisas atrás dos nomes, para viver, antes das narrativas e dos contos, o devaneio primitivo, o devaneio natural, o devaneio solitário, aquele que acolhe a experiência de todos os sentidos e que projecta todas as nossas fantasias sobre todos os objectos.”

Gaston Bachelard

Fernando Absalão Chaúque nasceu em 1996, em Manhiça, na província de Maputo. Estudou inglês na Universidade Pedagógica de Maputo e tornou-se professor. É fundador do blog literário tenacidadedaspalavras.com. É premiado em primeiro lugar no concurso de Redacção da Embaixada da República da Coreia em Moçambique e também do prémio literário Alcance Editores com o livro “Âncora no ventre do tempo”, em 2019. Para além desta obra de estreia, é co-autor de “Barca oblonga” (2021), “Mazamera Sefreu (2023), “Atravessar a pele” (2023). Fez parte ainda dos livros “Os olhos deslumbrados” (2021) e “Um natal experimental e outros contos” (2021).

O conto que analisaremos faz parte do livro “Âncora no ventre do tempo”, publicado em 2020. Este é um livro feito, não sobre o mito, mas a partir da experiência dele, se por experiência considerarmos essa faculdade na qual, por vivência própria ou dos outros, o escritor recorre para, graças as funções psíquicas e inventivas, narrar determinadas impressões. Estamos diante de um corpus textual inesperado e fascinante se se encarar, à partida, a seriedade paradoxal com que o seu título nos interpela, esse carácter poético empedrado e seco da unidade sintáctica que serve como título: “âncora”, “ventre” e “tempo”. O livro pode ser descrito do seguinte modo: um prólogo e nove contos intimamente relacionados, constituídos por um conjunto de textos de extensão variável porém na sua maioria breves, sendo que cada texto, sem tomar Moçambique propriamente como sua matéria, toca em aspectos identitários, socioculturais, antropológicos e etnográficos, onde o rural/vilarejo e o urbano, a tradição e a modernidade, o local e os valores da globalização, o velho e o novo, o mito e a positiva compreensão moderna de mundo cruzam-se.

Diríamos, por isso, que embora não apareçam ao longo das narrativas lugares específicos da geografia moçambicana, ao recorrer a expressões das línguas xichangana e xironga o autor leva-nos a admitir que Lufa-lufa, espaço no qual ocorrem os eventos narrados, é espécie de pseudónimo de algum lugar de Moçambique. Com uma linguagem simples, com recurso a um discurso enxuto, permeada de nomes e expressões vigentes no sul de Moçambique, conferindo uma identidade ao exercício literário, Chaúque coloca-se na estética mormente marcante nas obras de nomes como Noémia de Sousa, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana, só para citar alguns, cujas obras são um testemunho do hibridismo entre as línguas locais – bantu – com a língua portuguesa – adquirida.

Com variações de discurso entre o riso e a reflexão, às vezes há dadas situações que exalam em “Âncora no ventre do tempo” a ironia que se liberta da máxima latina: ridendo castigat mores. Os temas que se destacam no livro são os seguintes: a loucura, a superstição, a vida simples e campestre, o tradicional e o moderno, a promiscuidade, os vícios e o sentido proverbial com que os personagens parecem possuir em sua fala, até porque, afinal, conforme o prólogo atesta, quem conta essas histórias é um ancião a pedido de seus netos N’weti e Albino, quais após tanto insistirem-no ele anuiu:

“– Está bem, vou contar. Rendi-me.

Ficaram mais alegres. Não havia como sair daquela armadilha que aqueles pequenos caçadores de histórias me tinham plantado” (Chaúque, 2020: 5).

O conto que é objecto de nosso estudo é “Um animal celestial”, uma narrativa que recai sobre o ritual e o significado dado ao aparecimento de um animal considerado mítico em Lufa-lufa, o Halakavuma ou Pangolim, cuja recepção do mesmo pelos membros do vilarejo para saber da mensagem de que ele é portador exige que religião e tradição dialoguem, e a superstição impera como medida do que se pode acreditar e seguir para a felicidade de todos. Assim, numa noite de chuva, um animal aparece como portador de uma mensagem para aquela comunidade. O louco (Massutike), o padre (Vasconcelos dos Coelhos), o régulo (Nyoka) e sua esposa (Danisana) e as dançarinas e o Halakavuma são os personagens que intervêm no sentido de fazer com que haja condições requeridas por este último de modo que se saiba por que junto às chuvas, aquele animal dos céus, desceu por ali. Estes preparam rituais, falam com os espíritos dos antepassados, dançam nus e tocam batuques, como recepção calorosa ao animal celestial e, por fim, a informação que é dada é de que haverá fartura na presente época agrícola.

A ideia de título, numa narrativa, comanda o fluxo de toda a leitura. Ainda que uma vez e outra não haja uma dialéctica objectiva entre o título e o conteúdo tratado, nas margens do texto fica impregnada a súmula do que se pretende abordar. E o ponto de partida à análise do conto será a partir do título que é “Um animal celestial”. Do animal celestial tratado se depreende a ideia de se tratar de um ser ou entidade cuja proveniência remonta ao espaço celeste, conceito este que se aplica a tudo que é “próprio do céu (e também de Deus) que está ou que aparece no céu, que vem do céu” (Pombo, 2011: 260). Mas as nossas indagações são: que animal é esse? É possível que um animal tenha proveniência celestial ou que seja emanado por um Deus como portador de uma mensagem para os Homens? Se olhadas do ponto de vista racional e até da lógica estas questões, a resposta que se adianta será negativa. Os animais não partilham do mesmo código de linguagem que os humanos, o que levaria a dois problemas: ou não haveria comunicação possível ou então haveria falta de objectividade no que o animal quiser fazer chegar aos Homens.

Porém o mundo-vivido nem sempre é regido pela lógica, pela racionalidade na determinação dos factos, e é aí que emergem os mitos, como narrativas que engendram um autêntico modo de vida e psicologicamente estruturante de comportamentos religiosos nos seres humanos, onde animais aparecem e são acreditados portadores de mensagens profundas para a humanidade. Esses mitos, tornados familiares à medida que gerações e gerações confabulam acerca da sua forma de vida, moldam as crenças como a mais vinculativa força da imaginação humana (Noa, 1998: 26).

Em “A dictionary of literary terms and literary theory”, o mito é definido como uma história que não é verídica e que no entanto envolve, como regra de conexão com os Homens, seres sobrenaturais ou algum ser sobre-humano, mormente relacionado à criação e explicação de como alguma coisa ou instituição social veio a existir (Cuddon, 2013: 453).

Adiantamo-nos a relacionar o conto “Um animal celestial” à perspectiva mítica porque não é incomum que, nas diversas tradições mitológicas espalhadas pelo mundo, os animais, auxiliares e símbolos de divindades, apareçam como portadores de mensagens ou tenham um papel activo na rede de relações entre o quotidiano humano e os seres sobrenaturais. Basta que nos lembremos, no contexto da mitologia grega, da coruja, símbolo de visão penetrante e profunda e que era ligada à Athena, deusa da sabedoria; da abelha, no Antigo Egipto, símbolo de realeza devido à importância vital do mel que ela produzia; da cigarra, na China Antiga, representando a imortalidade; do cão, na mitologia Asteca, que era símbolo do deus dos mortos; da serpente, na sagrada escritura cristã, que levou Adão e Eva a comerem do fruto da árvore proibida e que os fez serem expulsos do paraíso edénico e esconjurados a determinados sofrimentos. E, na mitologia moçambicana, que animal é este e que funções ele desempenha? Mais adiante daremos resposta a essa questão.

***

Na perspectiva de Walter Benjamin podem-se distinguir dois tipos de narradores. O primeiro é o “camponês sedentário”, cujas narrativas ele encontra na terra, esse mundo-de-vida no qual está inserido, em sua matéria e experiência diária; e o segundo tipo de narrador é o “marinheiro viajante” que, estando distante de seu lugar de pertença, narra as experiências com uma certa distância das mesmas, como quem está pouco alheado. Portanto, embora “‘Quem viaja tem muito que contar’, diz o povo, e com isso imagina o narrador como aquele que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair de seu país e que conhece suas histórias e tradições” (Benjamin, 1987: 198). Sob tal perspectiva, o narrador que se manifesta em “Um animal celestial” é localizado dentro da terra, e o mundo quotidiano é o seu alicerce, ponto firme do qual ele narra suas histórias. É esse “camponês sedentário” de que Benjamin nos fala, com o qual as histórias presentes no dia-a-dia transmitidas oralmente, são responsáveis por forjar mitos, crenças e ritos, que com a evolução e invenção da escrita tornaram-se gravados em vários meios. Por isso que no Princípio contar uma história era o mesmo que dar a saber de sua experiência e a voz do narrador era a do “camponês sedentário”, pelo impacto emocional que gera uma história vinda de quem a viveu.

A narrativa inicia-se com a fala do personagem, na primeira pessoa, porém logo a seguir o narrador do texto assume a categoria terciária de descrição, com objectivo de tornar claro o que o personagem acima teria dito:

“– Parece um rato gigante e voador…

Foi assim que Massutike dilatou as cordas vocais e depositou toneladas de espanto nos ouvidos da abobada celeste. Fê-lo enquanto gotículas obesas despenhavam-se com uma grave força de gravidade e alfinetavam o chão. De longe, ouvia-se a voz dos trovões rugindo feito leões famintos” (Chaúque, 2020: 43).

A partir deste suspense, deste dizer mas não dizer o necessário, gera-se no leitor uma indagação necessária, uma mórbida curiosidade sobre que objecto é comparado a um rato gigante e voador. Tal sentimento produzido pela personagem e que não é intensificado pelo narrador ocorre como estratégia retórica de prender o leitor na narrativa, tal como em narrativas orais onde se lança a chama da vela que ilumina a curiosidade depois que se anuncia: “era uma vez” ou “karingana wa karingana” ou ainda “once upon a time”. O narrador é omnisciente neutro. Ele tem domínio da história mas não diz que animal é esse que se parece rato gigante e voador conforme disse o personagem. Mantém a sua neutralidade desviando-se para tratar da condição espiritual com que ficara o personagem depois do espanto causado. Tal acto descritivo esquivo é determinante para criar o clima de mistério, para atiçar a imaginação do leitor e manter invicto o suspense depois do animal visto – “dilatou as cordas vocais e depositou toneladas de espanto”, ou seja, gritou, espantado. Espantado o personagem e não anunciado até o momento o que lhe deixara assim, o narrador abre espaço para que a curiosidade se instale.

Umas das marcas do conto é o movimento. Porém, aqui, não é de partida que se observa essa ideia, sendo que o personagem Massutike, quem viu o que se parece com um rato gigante e voador, estava parado no pátio da igreja e todos os seus gritos dão-se no mesmo lugar, uma vez que chovia àquela altura. Só mais tarde verificamos que a narrativa se movimenta do pátio da igreja. E somente no § 21 verificamos a ideia de movimento pelos verbos “acelerou os calcanhares” (acelerar no sentido de ter saído a correr de onde estava) e “embrenhou” (embrenhar-se, no sentido de meter-se em…):

“Massutike não esperou nenhuma ordem ou ideia do padre. De alma em chamas, acelerou os calcanhares, desbravou arbustos e árvores lenhosas, embrenhou-se entre plantas trepadeiras e rastejantes, confrontou relampejos e granizos à casa do régulo” (Chaúque, 2020: 44).

Outro aspecto assinalado como elemento da narrativa é o tempo. E em “Um animal celestial” as acções decorrem no passado narrativo – inicia-se o texto com o verbo no presente. Mas o narrador assume os verbos no passado de início até ao fim. Enquanto os personagens situam-se no presente narrativo, o narrador, após os discursos, com recurso à anacronia, devolve-nos ao passado, com objectivo de conservar com quase perfeição a “coincidência temporal entre narrativa e história” (Genette, 1989: 34), ainda que tal estado seja hipotético que real.

Ao caracterizar o animal bem como nomeá-lo com base na nomenclatura local, o narrador mergulha no imaginário colectivo presente nos variados mosaicos culturais de que Moçambique é feito. Na tentativa de descrever este animal celestial, o narrador diz:

“(…) Na cavidade bucal, o bicho era desprovido de dentes, mas exibia uma língua comprida e viscosa. Todo seu corpo era coberto de escamas sobrepostas, as patas eram curtas, porém as posteriores apresentavam-se mais compridas e cada uma possuía cinco dedos” (Chaúque, 2020: 44).

Então, como que a tornar clara a descrição do narrador, o personagem Massutike acrescenta: “– É um Halakavuma…” (Chaúque, 2020: 44).

Esta convocação das línguas locais que antes já tínhamos evidenciado corrobora para o carácter mítico que tal animal carrega, pois ele só ganha toda essa simbologia a qual tencionamos mostrar nesta análise se considerado dentro de uma forma-de-vida específica e experimentada a partir de uma dada linguagem. O narrador, a gozar de sua autonomia, teria colocado na boca dos personagens que o animal celestial a que se refere Massutike é um pangolim, porque halakavuma é como se lhe designam em xichangana. Se isto fosse dito em português, porém, esvaziar-se-ia toda essência valorativa a que este animal tem no universo de cultura onde o xichangana ou xironga dominam, levando-o para o universo de língua portuguesa cujo não torna sagrado este animal.

No entanto, em Moçambique, o pangolim é mítico e cria nesta região uma visão obscurantista da realidade. No país, ele tem diferentes nomes. Na zona Norte, é designado Ekha, na região de Tete o nome é Xiphalualo, no Centro, Manica e Sofala, é conhecido por Xikwari e, no sul, por Halakavuma. O seu surgimento nessas regiões suscita controvérsias e diferentes interpretações. Acima de tudo, ele é considerado como o mensageiro e tanto pode anunciar a desgraça, como a bonança, cabendo a um curandeiro anunciar (@Verdade, 2020).

Para se chegar a saber qual é a informação de que o pangolim é portador, na narrativa segue-se um ritual. O régulo é chamado à igreja onde se foi esconder o animal. O padre e o régulo ficam seminus e invocam espíritos de antepassados diante do altar. No interior da igreja há mulheres que dançam e acariciam suas partes íntimas. Há batucadas. Até que o animal celestial se alegre e daí narra-nos Chaúque que:

“Massutike parou as batucadas e a voz ouviu-se novamente:

– Saiam todos à chuva. Molhem-se e depois voltem.

Todos seguiram as ordens. Mas quando já estavam quase para se porem à chuva viram toneladas de peixe deambulando no chão (…) avultadas quantidades de vários tipos de peixes choviam das alturas” (Chaúque, 2020: 45).

A leitura simbólica feita no Sul de Moçambique deste animal da fauna local, ainda que dissimulada pelo parágrafo acima, em “Um animal celestial” sugere-se, principalmente, a ideia de que o animal é portador de bonanças. Por isso, após desaparecer, ali, misteriosamente como nos deixa saber o narrador, deixou para trás uma mensagem: “(…) Nas entranhas do altar estava grafada a seguinte frase: CULTIVEM E PLANTEM INTENSIVAMENTE, ESTE É O ANO DA BONANÇA” (Chaúque, 2020: 46).

O halakavuma, no conto, foi o portador da boa-nova. E esse mito tem servido de alicerce para os moçambicanos nas comunidades rurais medirem as graças ou desgraças durante o ano agrícola. Pode-se compreender, então, que a trajectória dos personagens e todo o movimento que fazem parte do fim de querer saber o que traz aquele animal àquela vila, acreditando que ele é portador de alguma mensagem sagrada, pois “(…) segundo Massutike vinha do infinito, lá onde o sol e a lua acasalam” (Chaúque, 2020: 44).

Assim, consumado o seu objectivo de vinda, o narrador faz saber que o pangolim desapareceu, deixando presente a atmosfera mística do desconhecimento de como ali chegou, pois é suposição do narrador que tenha vindo com as chuvas do céu à árvore, no início da narrativa, bem como não se sabe como se deu o seu desaparecimento. Esta interacção do Homem com o meio, a fauna, na narrativa, endossada pelas crenças populares de que a fartura na produção agrícola só pode ser fruto de seres sobrenaturais que enviando o pangolim, os humanos ficarão a saber que é esta a época de produzir e que não haverá crise que se esbaterá sobre suas plantações e colheita.

Ainda que respondida a questão sobre que animal é este e que funções míticas ele desempenha, a análise do conto não se esgota com o que aqui foi dito. É possível identificarmos, ao longo da narrativa, o hibridismo cultural que os personagens apresentam:

“O padre disse ao louco que aquele bicho, já ultrapassava a dimensão animalesca. Era a comunhão espiritual dos antepassados e só descia à terra segundo a permissão que transcende a ordem mundana. O louco não hesitou, refutou as palavras do sacerdote. Questionou:

– Não é pecaminoso um padre falar e acreditar em antepassados? A sua missão não é falar de Deus?

– Cala-te, seu louco… sou padre mas nunca perdi as minhas raízes” (Chaúque, 2020: 44).

Há hibridismo cultural verifica-se na medida em que o padre, símbolo de certas ceitas cristãs, adentra no mundo espiritual e cosmogónico de Lufa-lufa, admitindo que aquele animal está ligado aos antepassados, cujas crenças neles, dentro do cristianismo é negada. Conforme a Bíblia, os espíritos dos mortos vão para o céu ou ao inferno, não permanecem no mundo natural e não interferem nele (Lucas, 16:20-31; 2 Coríntios, 5:6-10; Hebreus, 9:27; Apocalipse, 20: 11-15). Porém, porque o padre reconhece as suas raízes lufa-lufanianas ou africanas, faz emergir, desse seu mundo originário, em que nenhuma crença pode negar na totalidade, uma identidade étnica híbrida, fazendo coabitar as crenças endógenas de sua localidade com os valores cristãos frutos da globalização de hábitos ocidentais chegados no processo do colonialismo. E o que verificamos, portanto, nessa parte da narrativa, é que a identidade que se forma pelo hibridismo cultural não é mais nenhuma das identidades originais, é uma outra, produto da simbiose, embora guarde traços daquelas (Silva, 2013: 87).

Este hibridismo que Chaúque traz à tona na sua narrativa não é produto de sua oficina ficcional, reflecte as influências do colonialismo em África, onde a literatura moçambicana usa desse passado histórico para representá-lo.

Ao analisar um conto, não se pode descurar a sua forma. A forma no conto “Um animal celestial” possibilita a construção de sentidos no texto. Considerando que o conto “É uma narrativa mais curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens” (Gancho, 2002: 8), o texto analisado condensa o conflito que se revela ao leitor de uma forma rápida e espantosa. É uma narrativa breve, os períodos são curtos, realçando um estilo narrativo coeso e simples. Os parágrafos são compostos de orações coordenadas, identificadas através de frases complexas mas com descrições semanticamente independentes uma da outra, embora em alguns casos só possam ocorrer numa determinada sequência. Nesse tipo de orações a coesão do discurso pode ser apenas garantida a nível semântico, compreendidas como orações coordenadas assindéticas, pois não têm uma conjunção copulativa, apenas sinal de pontuação em cada frase (Ngunga e Simbine, 2012: 219-221).

Como se observou acima, o foco narrativo é dado a partir de um distanciamento mantido pela terceira pessoa descrito através de um narrador omnisciente neutro, pois “o narrador sabe tudo sobre a história” (Gancho, 2002: 27). Ainda que seja um narrador omnisciente neutro, dentro da narrativa podemos verificar que essa neutralidade é aparente, ficando visíveis juízos de valor acerca dos personagens, como atesta o fragmento: “(…) O padre desgrudou-se da cama, ficou a observá-lo pousado no ventre da minúscula janela patente no seu quarto: Cogitou: a loucura já está a pesar o enlouquecido” (Chaúque, 2020: 43, nosso destaque a negrito).

Para o narrador, o padre quando pousou na janela do quarto estava a pensar sobre a loucura de Massutike. Até que ponto se pode dizer, então, que esse narrador é omnisciente neutro se consegue invadir a consciência e expor os pensamentos de um personagem?

O narrador vai contando a história, dando voz a determinadas situações, as personagens, através de um discurso directo. A linguagem é límpida e objectiva para caracterizar o ambiente em que surgiu o pangolim. De um contexto de profícuos valores tradicionais, como se antevê diante de passagens como: “Vim falar com o régulo”, “Nyoka não trazia cobras no pescoço”, “Os dois invocaram os antepassados”, entre outras mais passagens. Tais imagens remetem, a nosso ver, a uma atmosfera tradicional pois a cidade, globalizada e liberta da barbárie das pequenas comunidades rurais, já não apresenta estruturas como os régulos, chefiando apenas as estruturas impostas pelo direito positivo. Também seria de espantar que na cidade se visse alguém a andar com uma cobra no pescoço, os hábitos da cidade, pelo menos à luz do dia, opõem-se à crença nos antepassados, sendo toda gente, simbolicamente, crente do positivismo científico e nas religiões de matriz monoteísta, sejam cristãs ou a islâmica.

Em suma, o mito em “Um animal celestial” é catalisador das acções das personagens, representando acções do mundo humano objectivo. O que hoje consideramos o mais puro acto racional e lógico, para os Homens de amanhã não passará de uma perspectiva mítica de entender a forma como funcionam as instituições sociais e seus valores, e será, ainda, uma perspectiva religiosa. Afinal a religião é uma antropologia, diz Ludwig Feuerbach. Atrelado a vários aspectos da intuição criativa porém com vínculos no mito, o conto como um em si encontra-se penetrado pelo mitológico. O mito do animal celestial é aqui reconhecível a partir da unidade que ele estabelece entre a mensagem portada pelo Halakavuma e o destino daqueles Homens.

 

Bibliografia

@Verdade (2020). “A vingança do mítico pangolim”. Disponível em: https://verdade.co.mz/a-vinganca-do-mitico-pangolim/

Aléssio, F. (2020). “Pangolim e coronavírus”. Grupo de Estudos Theria (Universidade de Pernambuco). Disponível em: http://www.geth.zoo.bio.br/spip.php?article47&captcha

Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense.

Bíblia Sagrada.

Cassirer, E. (1992). Linguagem e mito. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva.

Chaúque, F.A. (2020). Âncora no ventre do tempo. Maputo: Alcance editores.

Cuddon, J.A. (2013). A dictionary of literary terms and literary theory. 5th ed. United Kingdom: Wiley-Blackwell.

Gancho, C.V. (2002). Como analisar narrativas. São Paulo: Ática.

Genette, G. (1989). Discurso da narrativa. 3ª Ed. Lisboa: Veja.

Ngunga, A. & Simbine, M. C. (2012). Gramática descritiva da língua changana. Maputo, CIEDIMA.

Noa, F. (1998). A escrita infinita. Maputo: Livraria Universitária, UEM.

Pombo, R. (2011). Dicionário de sinônimos da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras.

Silva, T. T. da. (2013). “A produção social da identidade e da diferença”. In: _______. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, pp. 73-102.

Escrito por Daúde Amade

 

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FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE Licenciado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Pedagógica de Maputo, é professor de profissão. É também escritor, autor do livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021), Prémio Literário Alcance Editores, edição de 2019, e co-autor das seguintes obras: “Barca Oblonga” (editora Fundza, 2022), “Mazamera Sefreu” (editora Kulera, 2023) e “Atravessar a pele” (Oitenta Noventa, 2023). Fez parte dos livros “Os olhos Deslumbrados” (FFLC, 2021); “Um natal experimental e outros contos” (Gala Gala edições, 2021).

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