- Prólogo
Todo o mundo tem uma história para contar, assim como qualquer andorinha tem um motivo para geometrizar o azul do céu.
Quando se partilha uma história não se quer transmitir o narcisismo; ou a ideia de se estar a ser presunçoso. As histórias bíblicas foram escritas há séculos e elas inspiram a Humanidade.
II
Estava eu sentado em casa, quando um condiscípulo ligou-me e disse que o Conselho Constitucional lançou vagas de emprego. Eram para 5 áreas: Contabilidade, Recursos Humanos, Jurista, Administração Pública e Revisão Linguística. Esta última é que me identifica. Todavia, não levei a sério e deixei a ideia de concorrer para outros.
III
Faltavam 7 dias para o fim da submissão das candidaturas, mas eu não estava aí para esse negócio de concorrer. Porque eu pensava, como outros também pensam: «essas vagas já têm donos». Mas há um gajo que convenceu-me a concorrer, para depois não ter o sentimento de culpa por não ter tentado a sorte. Na verdade, ele era um «embuste» da Literatura Moçambicana. E reuni a papelada, mandei o scanner em pdf para uma amiga imprimir e submeter ao Conselho Constitucional. Dois meses depois, saiu a lista dos aprovados para os exames, que seria no dia de São Valentim – logo na Quarta-feira de cinzas. E surgiram as nuvens de empecilhos. Como viajar para Maputo?
IV
Era aurora do sol e minha mãe acabava de acordar. Disse-me ela que eu devia partir para Maputo e que minha vitória estava no CC. Mas como viajar? A penúria sempre visitou a minha família. E esta crise financeira que não quer ser efémera! Eu disse para ela: “caga lá para esses exames, é gastar dinheiro em vão sair de Gondola (Manica) para Maputo só para essa cena aí”. E ela, para me convencer, inventou a história de ter sonhado com minha admissão ao Aparelho do Estado pela porta do Conselho Constitucional.
V
A loucura reside, necessariamente, no facto de querer viajar para uma incógnita. Uma terra prometida, mas sem promessa de nada. Como ninguém tinha dinheiro, vi a minha mãe batendo portas nos vizinhos, nas amigas e nos agiotas. Uma semana e sem sucesso. Todos contavam histórias. Mas para o nosso suspiro, apareceu um agiota para emprestar 3000 mt para devolver por 5000 mt. Interjeições e objecções não faltaram, mas tínhamos que arriscar.
VI
Eram 21 horas quando saudei a cidade das acácias. Acabava de chegar com a minha pasta de sonhos. Descia eu do City Link, esse carro de esperanças. Fazia calor na cidade de Maputo. Eu, em frente ao hospital José Macamo, olhava para a estrela que riscava o céu na noite de arromba. Outra pedra no meio da estrada: ninguém quis me acolher, mesmo depois de tantas conversas e propostas uma semana antes da viagem. Eu só queria hospedagem para dois dias. Nenhum samaritano estava disponível. Mas há sempre uma solução: um rei das ninfas e xidosanas acolheu-me por uma noite. Se o leitor está a pensar que falarei sobre bubuta, esqueça. Nem sou boémio. O meu amigo só é rei das ninfas, mas não oferta visitantes com concupiscências carnais. Ele ofertou-me uma noite de repouso. Porém, naquela noite não descansei, pensei nos planos para o dia seguinte.
VII
A manhã de terça-feira despontou. E já tinha lugar para hospedar: na casa de um cota da Polana Caniço “A”. Mas com o cronómetro ligado. Dia seguinte era o dia do exame. Amigas chamavam para sair e eu negava. Quando se tem um sonho por alcançar, esqueça as mulheres e tudo o resto. Esteja apenas focado no sonho, sobretudo nas vésperas do evento. Para se concretizar um sonho é preciso estar casto. O corpo deve estar puro, em oração e em jejum.
VIII
14 de Fevereiro, dia dos namorados. Se eu queria um beijo e flores e rosas, só queria que viesse do Conselho Constitucional. Era Quarta-feira de cinzas, também. Nós católicos iniciamos o tempo de jejum colectivo e de sacrifício por quarenta dias.
Nesse dia de exame no CC, usei meu único fato e fui o primeiro a chegar. Mas fiquei distante do edifício do Conselho Constitucional, vendo cada concorrente a chegar. Eu ainda estava a pensar nos 3000 mt emprestados no agiota e nos 5000 que devia pagar. Pensava também nos bons revisores linguísticos que ia enfrentar.
IX
Os exames estavam agendados para 08h, mas é tendência em Moçambique qualquer evento iniciar uma ou duas horas depois da hora marcada. A minha paciência viu-se serena quando fomos solicitados para uma sala de espera. Não entraram todos, pois eram mais de 23 candidatos. Eu entrei nessa sala depois de outros serem entrevistados. Se era sala de espera, então eu esperava por uma menina chamada vitória. Nessa sala de espera, gajos comentavam em jeito de perder a fé: “só estamos a tentar, mas esses tipos não vão levar um gajo qualquer”. Eu olhava para eles e falava dentro de mim: eu venho de longe, passei Muxúngwè e rio Save; se for para perder, quero perder nas penalidades.
X
Para a sala da entrevista era chamado um por um. Cada um que saía da entrevista dizia “nem me perguntaram sobre os 8 manuais que nos mandaram ler”.
XI
De repente, chamaram por mim. Era a hora da letra “J”. Quando entrei, com delicadeza e ternura disseram-me para sentar como eu quisesse. Eram quatro membros de júri, todos sérios e olhando para o meu semblante. O primeiro começou a brincar com o meu nome religioso, contando sobre a história de João Baptista, o precursor de Cristo. O outro perguntava se eu sairia com alguém para curtir o dia de São Valentim. Era só para me deixarem à vontade, antes da entrevista propriamente dita. Porque naquele momento, parecia que aqueles candidatos tinham colocado na garrafa alguns potenciais revisores linguísticos. E, sem querer ser presunçoso, eu e o Carlos da Graça éramos uma ameaça para muitos. Os meus pés estavam trémulos e uma força maligna tentava ganhar espaço. As ideias fugiam – esses gajos vão às entrevistas de emprego depois de um bom banho, não é possível – pensava eu.
Pediram-me para falar sobre a minha experiência na Ethale Publishing, uma editora moçambicana com quem tenho colaborado como revisor linguístico. Naquele momento, eu pensei na distância que percorri para Maputo e no agiota que aguardava pelos seus 5000 paus. Eu disse para mim mesmo: tenho que entregar tudo, mesmo de forma tímida. Trouxe uma força divina para dentro de mim para enfrentar os condiscípulos que tomaram banho para nos tirar o conhecimento. [Eu não disse que tomaram banho nos vovós, o narrador autodiegético quis apenas trazer um momento hilariante]. E respondi todas as perguntas dos 4 membros de júri. A última questão foi xeque-mate, vinda de um senhor com barriga e parecia chefe de alguma coisa. Deu-me um acórdão e perguntou-me se ali tinha erros ortográficos. Olhei para o cota, fiz uma leitura rápida no seu semblante e percebi que ele só queria saber quanto tempo eu levaria para responder a uma simples pergunta, daí para inferir a minha competência. Eu respondi que a sentença do CC na minha posse não tinha nenhum erro ortográfico. E terminou a entrevista para mim. Missão cumprida.
XII
Pedi para hospedar durante dois dias na casa de um senhor. E terminaram os dias porque o cronómetro parou. Mas não tinha dinheiro para regressar a casa. Dentro de mim: acho que hei-de parar na esquadra ou no balanço geral, com Jorge Matavel a falar “um jovem saiu de Manica e está aqui nas instalações da Miramar sem dinheiro para viajar de regresso a Manica”. Aí liguei para um antigo colega da Universidade Eduardo Mondlane, porque eu não queria sair no balanço geral da Miramar. E ele disse: fique na minha casa o tempo que quiser. O meu mungano vive em Muhalaze. Mas esse “fique o tempo que quiser”, para quem é consciente e até educado, não vai mesmo ficar o tempo que quiser numa casa alheia e sem um tostão só para contribuir com algumas despesas. Talvez ficaria encalhado, como um navio que bate num iceberg.
XIII
Fiz alguns contactos, no máximo duas pessoas. Ora, não é porque essa gente tinha muito dinheiro, não; essa gente tinha coração grande e era a minha única solução. Se falhasse, já era a minha life e o balanço geral estaria à minha espera. Quando o pessoal de Maputo fala de «ndjombo», é o que eu precisava naquele momento: somente sorte.
Todos os dois contactos demonstraram vontade de ajudar, por isso disse que são pessoas com coração grande e que Deus estaria nelas. Veio-me a ajuda, por empréstimo. Aí somava esse taco com os 5000 paus do agiota e sem onde ter dinheiro para pagar. É por isso que vejo tudo isso uma loucura da minha parte. Uma loucura de loucos, no sentido literal da palavra. Enfim, tempos depois paguei ao agiota com os meus trabalhos de revisão linguística e quis pagar à pessoa que emprestou-me o valor para passagem (a pessoa simplesmente não recebeu porque quis ajudar, então converti a ajuda dessa entidade em bênção – não paro de pedir bênçãos para essa pessoa).
XIV
Em casa, a minha mãe dizia que eu era um grande vencedor da vida e um exemplo para a juventude. Quando falo de mãe, falo de ”madrasta”, mas é minha segunda filiação. A mãe biológica perdeu a vida quando eu tinha 1 ano de idade, depois do meu nascimento em Malawi (esse país irmão que quando o partido no poder perde as eleições entrega as pastas à oposição e evita guerra civil).
XV
Três meses depois, os resultados dos exames saíram no Conselho Constitucional. Ninguém me falou dessa novidade. Só pude saber depois de dois meses, quando alguém perguntou se o CC tinha me solicitado. Perguntei por que razão iam chamar alguém que vive no fim do mundo. Respondeu que fiquei em 2º lugar com 18 valores contra os 18.75 do 1º classificado. Fogo! Só por causa desse 75? Txeeeeeee, Moz é fodido! Mas só pediam uma pessoa para ocupar a vaga. Perdi mesmo nas penalidades. Minha mãe tirou lágrimas quando alguém mandou a foto da pauta; mas, para ela, até hoje, eu é que estou em 1º lugar, mesmo que eu diga “caga lá para isso, o mais importante é que o CC sabe que eu existo”.
XVI. Epílogo
Talvez o leitor possa receber isto como uma crónica ou um texto motivacional, mas eu vejo Deus como um escritor-narrador e eu como personagem protagonista, que coadjuvado por uma velha de 70 anos de idade, viajei para Maputo para escrever e inscrever o meu nome no livro dos sonhos.
[…] agora, não podemos nos enganar: que Moçambique precisa de luz, o nosso país precisa, para sairmos do precipício/abismo e da pobreza mental.
E esta foi a minha maior loucura: viajar como Abraão sem saber como as coisas vão terminar.
João Baptista Caetano Gomes
escritor, editor, revisor linguístico e activista do livro