Sempre fui agredido por este ilusório pensamento. No entanto, mantenho-me tranquilo. Tal pensamento oferece-me uma sensação de satisfação particular. Torna as utopias em imaginações agradáveis e quase palpáveis. Quem nunca teve este ilusório pensamento? Quem nunca se imaginou sentado a uma mesa redonda com os seus predilectos escritores?
Eu, por exemplo, já me imaginei com Dostoiéviski, Paul Auster e Georges Perec. Nós – os quatro – a comermos um beef no mesmo prato. Com os dedos, sem garfos ou facas. Sem guardanapos ou babetes. Com gula e rapidez. Já me imaginei a entrevistá-los sobre várias coisas íntimas, sobre as suas reais motivações para que continuassem a escrever mesmo quando parecia que já o tinham feito suficientemente.
Já me imaginei numa roda de conversa com Roberto Bolaño, a falarmos sobre a sua infindável prosa em “6666” ou sobre o porquê de ele não ter abraçado o realismo mágico aquando do “Boom Latino”. Já me vi trancado num quarto com Kafka, juntos a observarmos Gregor Samsa transformado em insecto.
Na verdade, já me imaginei em cenários diversos com diferentes artistas, alguns mortos, outros vivos. Falando dos vivos, lembro-me de ter andado à procura de João Paulo Borges Coelho, após ter lido o seu “O Olho de Hertzog”, um espectacular romance. Tive a grande sorte de encontrá-lo nas escadarias da Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), após ter exasperado algumas pessoas que se diziam próximas a ele; recusavam-se a oferecer-me o seu contacto simplesmente por maldade.
Charles Bukowski, num texto por ocasião do relançamento de “Pergunta ao Pó”, confessa que John Fante era para si uma espécie de deus literário e, assim sendo, padecia de receios para abordá-lo porque “os deuses não devem ser importunados”. Importuná-los constitui um crime severo. Dei-me ao trabalho de citar as palavras de Bukowski quando finalmente tive a oportunidade de sentar-me à mesma mesa com o professor Borges; ele escutou-me os imbróglios com um sorriso estampado nas faces e disse: “Bukowski era um louco. Conheço um grupo de leitores de John Fante no estrangeiro, que também diz a mesma coisa.”
Lembro-me sempre deste episódio e, quando posso, ponho-me a saudar o genial Borges ao telefone para, em seguida, dizer: “desculpa, professor, sei que os génios não podem ser importunados.” Ele, como sempre, põe-se a rir às gargalhadas. Teimoso que sou, importuno igualmente o grandioso Adelino Timóteo, génio que me faz acreditar na verdadeira generosidade, sempre aberto a ouvir e a responder às perplexas perguntas que lhe faço sobre a vida, assim como sobre a complexidade da literatura e o desafio de se ser escritor em Moçambique.
Ou seja, não aprendi nada com as palavras de Bukowski, estou sempre a importunar os génios, por conta deste ilusório pensamento que me faz acreditar que conversar com os predilectos é concretizar uma utopia.
Quando vou ao estrangeiro, este pensamento ilusório intensifica-se. Já me imaginei, por exemplo, numa longa conversa com Woody Allen, Tarantino e Royce da 5’9. A ilusão utópica está sempre a mentir-me. Diz-me, por exemplo, que – se um dia tiver a oportunidade de meter o pé nos Estados Unidos – farei parte de uma mesa redonda para discutir ideias artísticas com Jonathan Franzen, Stevie Wonder, Scorsese, Black Thought, Common e Kamasi Washington.
Já me vi em Portugal com João Tordo, Valter Hugo Mãe, José Francisco Viegas, Gonçalo. M. Tavares, Valete, Sam the Kid e Rui Veloso. Já me vi em Angola com Pepetela. Já saí da África do Sul para Austrália na companhia de J. M. Coetzee. Já saí de Marrocos para França ao lado de Tahar Ben Jelloun. Já cantei “Condolence” nos corredores de Londres com o próprio Benjamim Clementine. A mente ilusória já me levou para vários sítios ao lado de artistas robustos e inquestionáveis. São vários artistas e cenários. Ao fim de tudo isto, percebo que o romancista vive para concretizar cenários impossíveis.
Penetro num determinado país com os olhos virados para os artistas que admiro. Percorro as ruas desse país, pensando na possibilidade de me deparar com o admirado ou predilecto artista. Desta vez – na capital da Turquia – penso em como seriam os míticos guerreiros otomanos. Mas, acima de tudo, penso nos romances escritos por Orhan Pamuk e – como se o mundo sensível não me fosse suficiente – continuo preso à sua Turquia imaginária, como se a realidade não me saciasse a curiosidade.
A penetrante literatura seduz o leitor a confundir ficção com realidade. Eu, por exemplo, teria dificuldades para trocar algumas imagens ficcionais por uma certa realidade. Por mais que me apresentassem o minúsculo quarto de Raskolnikov, por exemplo, jamais acreditaria nele, porque o que me fora apresentado por Dostoiévski é por si só perfeito e insubstituível.
Os optimistas por aqui dizem que ainda poderei calhar com Pamuk se me mudar de Ankara para Istambul. No entanto, sei que não calharei com ele para nada, nem para um dedo de conversa sobre aquele seu livro de ensaios, intitulado “Outras Cores”. É mais uma utopia, é mais uma ilusão. Mas vale a pena pensar que tudo é possível, mesmo quando as probabilidades apresentam indicadores totalmente desfavoráveis. É assim como funciona a ficção: acreditar, construir e fundamentar com rigor uma história que nunca existiu, mas que poderia ter acontecido.
Por Albert Dalela