Para os escritores, as obsessões — sejam pessoais, estéticas, emocionais ou intelectuais — não devem ser domadas nem combatidas (desde que não sejam perigosas ou incapacitantes). Pelo contrário, devem ser acolhidas e exploradas no processo criativo.
Há décadas, nós (autores deste artigo), enquanto docentes de escrita, ficámos surpreendidos com a frequência com que os estudantes se queixavam de não terem ideias para escrever. Descobrimos manuais que sugerem que os alunos elaborem uma lista de potenciais fontes de inspiração (acontecimentos actuais, publicações no Instagram, desafios da vida pessoal, etc.) e tentem enquadrar esses temas numa estrutura.
Sabe de que estrutura falamos. Referimo-nos à chamada Jornada do Herói: ABCDE (acção, background, conflito, desenvolvimento e encerramento). Ou, talvez, à estrutura dos quatro passos do “querer”: (a personagem quer algo → encontra um obstáculo → luta → consegue — ou não — o que quer).
Essas fórmulas até podem ajudar, mas não frequentemente. O mesmo aplica-se às instruções excessivamente repetidas: “escreve sobre o que sabes” ou até “escreve sobre o que não sabes que sabes”.
A directriz principal (acreditamos nós) é a obsessão. Escrever sobre aquilo que profundamente amamos. Explorar as obsessões como bússolas orientadoras e também como matéria de trabalho: não se trata do que sabemos (ou não), mas daquilo em que não conseguimos deixar de pensar.
Independentemente do tema escolhido, existe uma correlação directa entre o entusiasmo e a descoberta do autor e o envolvimento do leitor. Para alcançar essa profundidade, muitas vezes é necessário ir além de um mero interesse ou ideia.
Siga esse calor, venha ele da “vida real” ou da imaginação, não importa quão improvável pareça como tema — seja grandioso e explicitamente político, ou aparentemente trivial, ou até embaraçoso admitir que se importa com tal coisa.
Ambos fomos profundamente marcados por experiências relacionadas com o silêncio em torno da doença e a dificuldade de lidar com o luto. A perda progressiva ou a fragilidade da memória — fosse por demência causada pelo HIV/SIDA ou por Alzheimer — fascinava-nos. Em momentos de sofrimento, obcecávamo-nos tanto com o que não era dito como com o que era efectivamente dito. Percebíamos os limites da linguagem, como esta nunca conseguia conter plenamente a vida, a dor ou a intensidade do que vivíamos ou testemunhávamos. Foram estas algumas das coisas que explorámos na escrita.
A obsessão pode conduzir-nos a lugares estranhos. E, dizemos nós, quanto mais estranhos, melhor — desde que autênticos. Não vale ser excêntrico apenas por sê-lo. Mas, se a sua obsessão for o facto de as gaivotas dominarem dinâmicas complexas de voo — bem, por que não ver aonde isso o leva?
E isso conduz-nos a um ponto crucial sobre as obsessões. Uma vez identificada uma, anote todas as imagens e associações que surgirem, por mais desconexas ou estranhas que lhe possam parecer à primeira vista.
Se é cativado pela aerodinâmica das gaivotas, mas as suas personagens não vivem junto ao mar, não se preocupe. Continue a escrever a partir do que é, por definição, o seu material pessoal (afinal, é a sua mente que o conduz). E, surpreendentemente, ao fazê-lo de coração aberto, a sua história acabará, muitas vezes, por ganhar sentido. Se não for logicamente, então emocionalmente. Se, de repente, uma imagem do filme The Godfather surgir quando visualiza gaivotas a brincar com o vento, siga essa ideia. Veja aonde o leva. Obsessão, obsessão, obsessão. E atenção redobrada. Não deixe escapar nenhuma associação preciosa.
Quando se foca nas suas obsessões e se permite ligar-lhes elementos improváveis, coisas maravilhosas podem acontecer. Eis um exemplo, demonstrado no aclamado livro de não-ficção da Dra. Mona Hanna-Attisha, What the Eyes Don’t See: A Story of Crisis, Resistance, and Hope, sobre a descoberta de chumbo na água potável de Flint, no Michigan, e o seu impacto nas crianças.
Dizer que Hanna-Attisha estava obcecada com a história da água contaminada é um eufemismo. No entanto, quando se sentou para escrever sobre a catástrofe, não conseguia afastar outros pensamentos: a sua família alargada, a sua história enquanto filha de imigrantes iraquianos, o país por vezes hostil onde os pais tinham vindo parar, e a sua própria vida pessoal. E decidiu incluir tudo isso no texto.
Ao fazê-lo, não diluiu o poder do livro — tornou-o mais forte e absolutamente único. Curiosamente, outro livro sobre a crise de Flint foi publicado na mesma altura, mas com um tratamento factual mais linear.
Esta estratégia dupla — focar-se nas obsessões e acolher os lugares estranhos a que o podem conduzir — é um aspecto essencial da boa escrita. Chamamos a estas derivações do tema obsessivo nonconforming oddities.
O que é uma nonconforming oddity? Qualquer fio inesperado que, à partida, possa parecer irrelevante, mas que, ao desenvolver (e rever) o seu texto, se revela extraordinariamente importante — até essencial.
Uma nonconforming oddity é aquela imagem ou secção que, num workshop de escrita tradicional, lhe diriam para “cortar”, em nome de uma suposta coerência formal. Mas encorajamo-lo a reconhecer esses momentos como possível ouro entre a palha — e, depois, a verificar se, na versão final, o texto os absorve.
“Absorver” é um termo que usamos muito no ensino da escrita. Perguntamos: a nonconforming oddity contribuiu para a riqueza do mundo retratado? Avançou a narrativa? Criou atmosfera ou ritmo que sublinhou — ou contrastou com — as preocupações temáticas? Aprofundou o impacto emocional? Se sim, então foi absorvida.
E, se não for absorvida, e sentir que o texto fica melhor sem ela, simplesmente remova-a. Afinal, pode sempre cortar algo mais tarde, se não estiver a funcionar como esperava. São apenas palavras — por mais chocante que possa parecer ouvir isto de professores de escrita. E as palavras podem ser apagadas, editadas, substituídas e transformadas. O que estamos a dizer é: o risco de seguir a sua intuição é muito pequeno. Vá em frente, faça essas ligações ilógicas entre as suas obsessões e os pensamentos, sentimentos e imagens estranhas que surgirem durante a escrita.
Tenha em mente que, embora os riscos sejam pequenos, os ganhos podem ser absolutamente espectaculares. Experimente — e veja. Literalmente, não tem nada a perder.
Fonte: The Lab, by Matthew Clark Davison and Alice LaPlante
Género Literário: dialética entre forma e conteúdo
Tradução: Fernando Absalão Chaúque

