Para aqueles que um dia, em sã consciência,
deixarão de ser como um dedo.
Certa foi uma vez, a Bala perguntou ao seu velho companheiro, a Arma.
— Já pensou?
— O quê?
— Se eu um dia me recusasse a sair?
— Já lhe avisei e lhe digo mais, você não escolhe o que fazer ou o que pensar. Você apenas obedece às ordens.
— Quais ordens? As pessoas me culpam e me acusam de acabar com a espécie humana, mas elas não sabem que a culpa é igualmente sua.
— Minha?
— Sim. Se você não existisse e não aceitasses fazer o que eles mandam fazer, nada dessas ordens eu cumpriria.
— Pobre Bala, Faça como eu, contente-se com a vida que leva. Sabes muito bem que sem a minha existência você não teria vida alguma nesse mundo. Agradeça-me.
— Olha só para você, com alma toda ela arruinada e desatada. Do que eu poderia lhe agradecer?
— Suponho que sabes.
— Decerto que não sei.
— Pois farei a gentileza de lhe fazer lembrar: nós fomos feitos para um e outro (….) — interrompido,
— Já conheço essa história, meu amigo.
— Deixa-me continuar, para nunca mais me acusares das tuas barbaridades. Eu e você somos o princípio e o fim de todas as coisas. Nada chega a você sem antes passar por mim.
— E daí, que vale tudo isso? Eu é que vou adiante, perfuro o crânio, atravesso as tripas, furo o coração e, por vezes, por falta de forças, permaneço e morro junto.
— Vele-me a pena porque graças ao seu trabalho eu continuo sendo útil. E graças a minha utilidade, você existe.
— Olha só para você com esse ar todo orgulhoso. Esqueces-te que sem mim, você não é nada. É um ser sem nada.
— Pouco me importa sua objeção. Apenas contento-me.
Nesse enquanto dessa conversa, o Dedo se fez presente num tom vaidoso. Encostou-se ao gatilho, por uns segundos, em silencio, ficou ouvindo a conversa entre Bala e a Arma. Sorrindo pelo que escutava disse:
— Oh, Arma, por que ainda se dá o gosto de ouvir o que essa daí diz? Sabes muito bem que ela não vale nada. Você cumpre as minhas ordens e ela as suas. Não é genial?
A Bala e a Arma ficaram em silencio. Sabiam que a presença do Dedo, coisa boa não seria. O Dedo sempre foi este companheiro que aparecia quando houvessem ordens superiores. O Dedo foi sempre este minúsculo chefe das coisas, o lambe-botas, como chamam-no. Achava-se tão cheio de poderes, tão cheio de patentes na vida, só porque vai a grandes festas, a grandes reuniões e aperta as mãos de grandes chefes e, quando pudesse, agraciava-se dos restos de vinhos caros que sobrava.
— Diga lá logo o que você veio aqui fazer, oh, Dedo sujo. — perguntou Arma.
— Chame-me do que bem quiseres. — Sorriu. — No final, eu que levo a melhor.
— Hum, melhor, é!? —retorquiram em uníssono
A Bala em seguida disse:
— Bem sabemos que você não tem função alguma na vida a não ser cumprir tais ordens. Graças a você as pessoas nos olham com cara torta. O que você ganha com isso?
— Não vos interessa. Vocês só servem para cumprir as minhas ordens. Já agora, preparem-se porque amanhã vamos trabalhar. Aliás, você Bala, vai trabalhar.
O Dedo saiu. No dia seguinte, a manhã nasceu tenebrosa e deplorável. O Dedo se preparava para mais uma missão. Nesse enquanto a Bala disse a Arma:
— Meu companheiro, aqui vou eu mais uma vez, ficarás sozinho e se lamentado. Espero nunca mais voltar a vê-los.
— Que pena!
— Pena lhe tenho eu. Se eu me for, com quem conversará? Com o Dedo? — Sorriu sarcástica; — esse que anda por aí lambendo as mãos dos outros? Duvido. E se eu não voltar, que falta farei?
O Dedo sob as ordens superiores não esperou para ouvir a resposta da Arma. Apertou no gatilho e a Bala se foi e nunca mais voltou. Hoje a Arma entende que sem a sua amiga, ele não serve para nada. Contei essa história ao meu tio, um ex-camarada aposentado, com uma voz surda me disse: — Também já servi de dedo para uns nessa vida.
Gaspar Pagarache, 2025
(in- O Caderno das coisas que não falam, inéditos)
1 comentário
🦁 Durante o retiro, em surdina, disse a Bala: -Que alívio é não ter “ordens superiores” a me inferiorizarem.👌🏾🇲🇿