O Crime Transnacional Organizado em “Zero Sobre Zero – O Espião que veio de Kigali” de Aurélio Furdela
Dois departamentos moçambicanos de Investigação Criminal, um actuando de forma confidencial e discreta, o DEOPE, e o outro actuando de forma publicamente identificada, o SERNIC, cruzam-se, chocam-se, na resolução de um crime. As razões dessa tensão são óbvias: ninguém conhece o DEOPE, nem leitor, nem o SERNIC, e isso torna aquele Departamento suspeito aos olhos do SERNIC.
O romance policial “Zero Sobre Zero”, de Aurélio Furdela, compromete-se, do seu início ao fim, a tratar de uma investigação criminal. Todos os seus personagens estão directa ou indirectamente ligados aos assassinatos em investigação. Qualquer recurso à analepse tem por propósito explicar ou consubstanciar os eventos do presente da narrativa, e não de desenvolver uma outra linha temática distanciada do assunto criminal em pauta no romance. Ou seja, o narrador não mostra nenhum interesse em dar destaque a temas que não estejam ligados ao crime.
Uma das novidades do enredo é a sua dimensão internacional do crime em investigação. Se, por um lado, o SERNIC investiga o assassinato “acidental” de um cidadão ruandês em território moçambicano, por outro, o DEOPE investiga a chegada clandestina, por isso suspeita, de um Agente Ruandês de Operações Supra-especiais, numa altura em que, no enredo, Ruanda fornece sua ajuda militar para a contenção dos ataques em Cabo Delgado.
Estes cenários colocam o DEOPE em suspeição, forçando os agentes Lioste e Vinheta a considerarem a máxima emblemática das Relações Internacionais: “Não há almoços grátis”. Por esta razão, o agente do DEOPE, Lioste, chega a declarar: “Toda a cooperação entre Estados guarda uma agenda oculta”. Assim, os agentes secretos optam por uma investigação que evite a escalada de uma crise diplomática bilateral entre Moçambique-Ruanda.
Ao longo das investigações desenvolvidas, tanto pelo SERNIC quanto pelo DEOPE, descobre-se que o assassinato inicial era só uma linha ora costurada num tecido mais abrangente de crimes, com forte envolvimento de Altas Individualidades Moçambicanas, revelando vítimas ruandesas, etíopes, burundienses, somalis, e, até, nigerianas.
A disposição estética e linguística de “Zero Sobre Zero” é reveladora de um sofisticado capital lexical do seu autor, com mais de vinte anos de carreira literária. Conforme alicerçado por Lubliner e Smetana (2005), o capital lexical (riqueza de vocabulário) é igualmente um factor determinante da qualidade de escrita. Assim, quanto maior for esse capital, tanto maiores são os recursos disponíveis para seleccionar vocabulário preciso e evitar repetições lexicais.
A verosimilhança com que os diálogos são construídos em Z.S.Z é de uma leitura fascinante, que pendulam entre a linguagem formal, informal e ultrajante, sabendo a temperos do Português de Moçambique, com uma doze de ironia que, mesmo sem pretender, provoca um humor sutil.
“Zero Sobre Zero” inscreve-se, certamente, na categoria de um romance policial, com características que o singularizam e, inclusive, o distanciam dos demais romances moçambicanos classificados, também, como policiais (Rabhia, Mundo Grave, A Legitima Dor da Dona Sebastião, entre outros). Neste sentido, a questão do género policial, muito fértil e tímido na literatura moçambicana, encontra a sua síntese na epígrafe de Todorov: “O gênero policial não se subdivide em espécies. Apenas apresenta formas historicamente diferentes.” Boileau-Narcejac (1964).
Referências
Lubliner, S. & Smetana (2005). Getting into Words. Vocabulary Instruction that Strengthens Comprehension. Baltimore: Paul H. Brookes.
Todorov, T. (2003). Tipologia de Romance Policial.” In, As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva.
Por: Gerson A. S. Pagarache