O ano de dois mil e vinte e quatro está agora ao alcance exclusivo da memória. Quando um ano se desvia do calendário, é usual fazer-se um inventário das experiências que nos moldaram. No meu caso, muitas dessas vêm das leituras. Lí ao todo quarenta e sete livros. Partilho neste artigo uma lista do que considero as dez leituras que mais me impactaram no ano transacto. Cuidei para que a lista fosse mais abrangente e/ou inclusiva possível, pelo que separo então, dentre autores nacionais e estrangeiros, dois livros de poesia, dois livros de contos, dois romances, dois livros de ciências sociais e dois livros de filosofia. A ser assim, não se trata apenas de uma questão de gosto; cada uma dessas leituras me tocou, me desafiou e me transformou de alguma maneira. Não se trata também de livros publicados em dois mil e vinte e quatro, mas de livros lidos naquele ano. A ordem da lista que se segue é alfabética, em função dos títulos de cada livro.
- A Hora do Diabo — Fernando Pessoa
A Hora do Diabo (Rolim), da autoria de Fernando Pessoa (Portugal), é um livro de conto carregado de lirismo. Nesse livro, o autor explora questões místicas e metafísicas por meio de uma conversa entre o Diabo e a Maria. Nesse diálogo, o Diabo não é retratado como aquela figura demoníaca convencional, mas sim como uma entidade sábia, cínica e sarcástica, que questiona as noções humanas de moralidade, religião e liberdade. Ele apresenta suas próprias ideias sobre o mundo, a vida, Deus e a natureza humana, a pôr em questão as concepções clássicas sobre tais conceitos. O que me impacta no livro é o lirismo e o cinismo obductos na combinação de questões místicas e metafísicas com a visão introspectiva característica de Fernando Pessoa, mormente ao abordar conceitos como o livre-arbítrio, o bem e o mal, o poder do imaginário e a natureza dualista do universo.
- Dicionário do Diabo — Ambrose Bierce
O Dicionário do Diabo (Tinta da China), da autoria de Ambrose Bierce (EUA), é um livro diferente dentre os diferentes. Nesse livro, por intermédio de um género irreverente de aforismos, Ambrose Bierce apresenta críticas ácidas às instituições, às culturas, à ciência, à religião, à filosofia, às categorias e também aos indivíduos. Trata-se de um dicionário repleto de cinismo, sarcasmo, ironia e lucidez, completamente idiossincrático, gracioso e inteligente como os diabos. O Dicionário do Diabo é um clássico que convida os leitores (audazes, aflitos e, portanto, raros) a duvidarem de todas as crenças e a rirem de todas as convicções. Ambrose Bierce é o autor de minha “bíblia”, meu livro de cabeceira, o Dicionário do Diabo, um livro que ilumina, guia e diverte de forma abnegada.
3. Flowers For Algernon — Daniel Keyes
Flores Para Algernon (New Windmills), da autoria de Daniel Keyes (EUA), é um romance de ficção científica que aborda temas como inteligência, identidade, inclusão social e felicidade. O texto é escrito em forma de diário (relatórios de progresso) por Charlie Gordon, um homem adulto com deficiência intelectual que se submete a um experimento cirúrgico para aumentar sua inteligência. Após o procedimento, a sua inteligência se expande de modo tão acelerado que supera os cientistas que o estudam. A sua percepção do mundo, das pessoas ao seu redor e de si mesmo também muda drasticamente. Antes da operação, os relatórios de progresso são repletos de erros gramaticais, em reflexão de suas limitações cognitivas. A medida que sua inteligência aumenta, a linguagem se torna mais sofisticada e articulada, de modo que simboliza o seu desenvolvimento mental. A evolução na escrita não representa apenas um progresso intelectual, mas também uma mudança na percepção de si mesmo e do mundo. A linguagem, nesse sentido, é uma extensão do “eu” de Charlie, um registro de suas transformações derivado da expansão de sua consciência. Quando ele começa a regredir, os erros reaparecem, a indicar o retorno à sua condição inicial. É uma leitura que cativa a cada página, desde que se acompanha o despertar tanto intelectual quanto emocional de Charlie, enquanto ele descobre as complexidades das relações humanas e a dor de entender o mundo. É uma leitura que me impacta pela forma inusitada como revela que a inteligência pode ser insuficiente para determinar necessariamente o valor de uma pessoa sujeita à complexidade dos fenómenos sociais.
- Missal Para O Diabo — Cruz & Sousa
Missal Para O Diabo (O Grifo), da autoria de Cruz e Sousa (Brasil), é um livro de contos e poemas de horror gótico. O livro está dividido em duas partes, a saber: Ritos em Prosa e Versos Satânicos. Em ambas partes, o texto combina o teor de angústia existencial, o contraste entre o sagrado e o profano, e um mergulho no interior da alma humana. Nesse livro, Cruz e Sousa faz uma crítica à hipocrisia social e religiosa de sua época, ao revelar um profundo desencanto com a vida, as instituições e os valores que vigoravam na sociedade. Ainda nesse livro, pode-se encontrar fantasmas, possessões demoníacas, necrópoles, santuários de cultos profanos, clérigos de mãos manchadas de sangue e até mesmo o Grande Dragão, a Serpente Original. É um livro que me impacta pela habilidade extraordinária de o autor me pôr a enxergar claramente o que estou a ler, e, sinceramente, é surpreendente!
- Nexus — Yuval Noah Harari
Nexus — A Brief History Of Information Networks From The Stone Ave To AI (Random House), da autoria de Yuval Noah Harari (Israel), é um livro de Ciências Sociais que explora questões como Tecnologia, Biotecnologia, Inteligência Artificial, e seu impacto nas sociedades humanas. Yuval Noah Harari tornou-se conhecido com o livro Homo Sapiens, que também li em dois mil e vinte e quatro. Nele, reconta a trajectória da humanidade desde seu surgimento como civilização, e seus esforços para evoluir e desenvolver sua estrutura material. Em Nexus, Yuval Noah Harari dedica-se ao fenómeno das redes sociais, da conexão virtual e do potencial, assim como do perigo da Inteligência Artificial. O poder das redes de informação desde os primórdios da humanidade até à revolução tecnológica e ao explodir da Inteligência Artificial nos exorta sobre a nossa falta de cuidados ao abrir novas frentes de conhecimento, como a Inteligência Artificial (o principal foco no livro). O que me impacta nesse livro é a análise que o autor faz da forma poderosa como a informação tem vindo a ser usada pelos diferentes sistemas de exercício de poder e as escolhas urgentes que a humanidade deve fazer para sobreviver e prosperar.
- Memórias do Subsolo — Fiódor Dostoiévski
Memórias do Subsolo (Editora 34) é uma prosa visceral, escrita por Fiódor Dostoiévski (Rússia) no leito de morte de sua esposa. Talvez esse caso trágico de sua vida tenha sido um soberbo influxo para um romance tão profundo e impactante, que perscruta a psique atormentada de um personagem que impeliu para o fundo do seu próprio pesar. Fiodor Dostoievski parte de uma temática existencialista, que nega tudo e todos, e apresenta o fluxo de consciência de um protagonista sem nome, narrado em primeira pessoa, e que adentra até o mais fundo dos sentimentos e até o mais controverso dos pensamentos. São relatos de memórias do protagonista, em que o subsolo é o refúgio para os seus questionamentos e problemas metafísicos. O que me impacta nesse livro é a forma febril e arrebatadora como o autor, através do seu personagem, explora a natureza humana ao descrever, por exemplo, a sua flexão de desgostos, a ssber: o desgosto pelo trabalho, que é meio de exploração; o desgosto pelas amizades, em sua visão fúteis; o desgosto pelo sentido da vida; o desgosto pelo caminho belo e nobre enfiado goela abaixo por filósofos e escritores que dizem entender a alma humana, no intento de dar sentido à existência.
- O Cardeal do Diabo — Elísio Macamo
O Cardeal do Diabo (Kuphaya), da autoria de Elísio Macamo (Moçambique), é um livro Ciências Sociais que explora a trajectória claudicante e sem destino (ou com destino incerto) de uma sociedade onde os moçambicanos estão sujeitos a lidar com a pobreza, a fome, o desemprego, os conflitos armados,… com recurso a lamentação e/ou resignação. Este livro me impacta pela forma peculiar como o autor trata dos problemas domésticos moçambicanos. Nele, recurso lúcido ao cinismo, Elísio Macamo apresenta a face tal e qual da coisa pública moçambicana, infestada pela corrupção, pela injustiça, pelo nepotismo, pela hipocrisia, pelo abuso de poder, entre outras perversões políticas.
O Retorno do Bom Selvagem (Ethale Publishing), da autoria de Severino Elias Ngoenha (Moçambique), é uma análise da crise ecológica contemporânea sob uma perspectiva filosófica africana. Severino Ngoenha recorre à ideia do “Bom Selvagem”, proposta originalmente por Jean-Jacques Rousseau, para reflectir sobre a relação do ser humano com a natureza. No entanto, ele adapta e ressignifica o conceito ao contexto africano, de modo a explorar as tradições, cosmologias e práticas africanas que enfatizam a harmonia entre o ser humano e o meio ambiente. Interessa nesse livro o facto de consistir numa reflexão sobre quão o mundo está constantemente a registar problemas de natureza ecológica, ao passo que o africano encara tais problemas como se fossem exclusivamente do ocidente. Severino Ngoenha pretende, portanto, consciencializar o africano sobre os impasses que este fenómeno traz no presente, a fim de que não nos empurre para um futuro ecológico incerto, colocando em risco a existência do próprio africano.
- O tempo Adiado — Ingeborg Bachmann
O Tempo Adiado e Outros Poemas (Todavia), da autoria de Ingeborg Bachmann (Áustria), é uma antologia poética que reúne conteúdos dos livros O Tempo Adiado e Invocação da Ursa Maior (que li também em dois mil e vinte e quatro), além de poemas escritos e veiculados de maneira esparsa. O livro explora temas como o amor, o tempo, a morte, a perda e a condição humana. O contexto desse livro está intimamente conectado com os problemas do período que sucede a Segunda Guerra Mundial, pelo que Ingeborg Bachmann também incorpora imagens de desespero e esperança, misturadas com um tom melancólico. Os poemas de Ingeborg Bachmann costumam ser marcados pela introspecção, pela profundidade emocional e pela reflexão filosófica, muitas vezes a lidar com sentimentos de alienação e um mundo fragmentado. O que marca profundamente neste livro é o assombro que se infiltra no espírito do leitor, provocado por imagens insólitas e por uma expressão que, ainda que densamente elaborada, persegue com avidez a pureza na representação, tanto das paisagens do mundo exterior quanto dos recantos mais íntimos da alma humana.
- [poemas] — Wisława Szymborska
[poemas] (Companhia das Letras), da autoria de Wisława Szymborska (Polónia [diz-se “Vissuava Chemborska”]), laureada com o Prémio Nobel de Literatura em 1996, é uma antologia de quarenta poemas, que confere um panorama de sua fausta obra. Esse volume atravessa os seus primeiros livros e chega até às suas últimas publicações, com ênfase para as características que a tornam suigeneris, a saber: a concisão elegante, a clareza luminosa, a ironia refinada e o olhar perspicaz sobre o mundo. O que mais me impressiona nesta obra é a clareza fluida da sua poesia, que dissimula uma profundidade simultaneamente espantosa e subtil. Os seus poemas erguem-se como autênticas constelações de assombro, tanto pela exploração de pequenos objectos e das rotinas do quotidiano quanto na forma perspicaz com que aborda e questiona os erros e virtudes da história humana. Com versos límpidos, desprovidos de excessivos enfeites figurativos, mas dotados de uma precisão cortante, Wislawa Szymborska sabe ainda estar ao alcance do núcleo da alma do leitor.
Por Ericson Sembuer