Em tempos de muitos assuntos, falar de livros é também um acto de terapia. E, então, perguntam-me que leituras, entre leituras, julgo relevantes, nas que fiz em 2024.
Vou tentar responder, certo das dificuldades que tenho em falar das coisas, principalmente, quando há o risco de induzir os outros. Pelo que, o que se segue é também um alerta contra o esquecimento, já que muito do que li vai mesmo pela linha da história e de momentos colectivos que os autores decidiram dedicar um olhar particular.
- Atos Humanos, de Han Kang
Ganhou o Nobel e eu não a conhecia. Não que eu seja um exemplo de quem lê os futuros nobel, mas dá sempre aquela vergonhazita quando percebemos que um autor é-lhe atribuída a mais importante distinção e nós que andamos metidos na literatura não conhecemos. Faz-nos descer à terra: há muitos livros ainda por ler.
Han Kang escreveu o que se passa em Moçambique, hoje. Vá lá, os acontecimentos narrados são baseados nas manifestações estudantis de 1980, na Coreia do Sul. A autora usa suas próprias sensações para conferir peso às emoções vividas pelas personagens. Pensar em adolescentes e jovens que vivem um autêntico cenário de guerra, convictos, mas também com os naturais receios e medos da ocasião, com uma escrita enxuta, como se os narradores quisessem representar a barbárie através da nossa leitura. Confesso que os nomes das personagens não me ficaram, mas a sua alma está ainda a correr-me nas veias.
2. O Massacre Português de Wiriamu Moçambique, 1972, de Mustafah Dhada
Já conhecia os relatos do Padre Hostings sobre o massacre de Wiriyamu, mas ler o livro do moçambicano Mustafa Dhada conferiu-me mais uma forma de entrar na história. O autor buscou testemunhos de pessoas locais que viveram a chacina. E procurou listar os nomes das vítimas, dar-lhes vida, não se limitando à tentação generalizada de realçar as responsabilidades do regime fascista português. Sou um defensor de que se dêem nomes às vítimas, porque os nomes são a existência e com eles vem tudo o resto: o pensamento, o corpo, as vivências. Ainda mais quando parece reacendido o debate sobre a reparação histórica, ler e reler sobre esse tempo é importante e quanto mais versões podermos conhecer melhor, assim escapamos dos efeitos nefastos da história única.
3. Crónica da Rua 513.2, de João Paulo Borges Coelho
Neste ano li Museu da Revolução, de JPBC. Mas voltei ao romance publicado em 2006 e ainda bem. O tempo que vivemos exige a leitura ou releitura desse romance em que uma rua se confunde com um país na euforia da mudança. No caso, o fim do colonialismo e os acontecimentos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, com a expulsão dos portugueses em Moçambique, mas também o clima de tensão entre os moçambicanos que ocupavam os edifícios da cidade, expropriando-os dos antigos donos (colonos), mas também os actos de resistência ou incredulidade em relação ao processo de descolonização que reinou em alguns. As vinganças, as intrigas, as perseguições e tudo o resto, levam-nos a entrar num contexto histórico que passados 50 anos, ainda é carregado de perspectivas divergentes de interpretação, entre cá e lá.
4. Cidadania digital: explorando oportunidades e enfrentando desafios, de Celestino Joanguete e Dércio Tsandzana
Os dois autores são provavelmente dos que mais produzem literatura sobre a utilização das novas tecnologias de informação e comunicação em Moçambique. Tsandzana mais no campo dos activismos sociais e políticos, participação e democracia; Joanguete no campo da mecânica de funcionamento das plataformas e como elas influenciam o paradigma da comunicação ou do exercício do jornalismo em Moçambique. Confesso, o que me levou ao livro foi mais a vontade de compreender os fenómenos sociais vs internet. Mas surpreendi-me positivamente pelo conjunto, por toda a obra. E não é para menos, basta ver como a repressão às manifestações nas ruas foram contornados pela internet. Ainda mais, em 2024 assistimos a um fenómeno inédito, o bloqueio da internet. Outros países africanos, por exemplo, em actos eleitorais ou em contextos de protestos sociais ficaram-se pelo bloqueio de algumas redes sociais, como o Facebook, Tik Tok e WhatsApp, em Moçambique, fez-se shutdown da internet, pelo menos a que nos chega por redes de telefonias móveis, para atingir as massas.
5. O desamparo das flores, Miguel Luís
Primeiro livro de Miguel Luís, publicado em 2023, andou por aí nos perdidos até que foi achado. E que achado! Não há como não se comover com a narração de Carlitos e do seu irmão, em perspectivas diferentes sobre o mesmo acontecimento: o rapto de Carlitos. Honestamente, não sou de obrigar ninguém a nada, muito menos quando se trata de livros, mas este livro de Miguel Luís precisa ser lido. Escusado será dizer que narrar com uma voz de infância é desafiador e que o autor conseguiu muito bem. Um livro que vai na onda do que admiro, por exemplo, em Rogério Manjate, Celso C. Cossa e Carlos dos Santos, não tomar as crianças de tolas e desprovidas de capacidades discursivas e de interpretação. E porque falei de Carlos dos Santos, aproveito para recomendar a leitura de “O Domador de Medos”, para nos questionarmos sobre as origens do medo, e o medo que às vezes temos de viver sem ele.
6. Espíritos Quânticos: Uma Jornada por Histórias de África em Ficção Especulativa, volume 2., organização de Virgília Ferrão
Esta antologia é provavelmente das melhores obras que circulam em Moçambique desde 2022. Já há muito nos batemos com pouco acesso à literatura africana, mas também, num contexto editorial de “sobrevivência”, o conceito desta publicação é digno de realce. É realmente um projecto fora do comum, tal como as estórias que traz. Li o primeiro conto e fiquei logo paralisado, sem olhos para mais anda a não ser continuar a mergulhar nos enredos estranhos e imprevisíveis do género fantástico. E como me referi, a beleza para além do género está na diversidade de vozes, encontrando autores de vários países africanos e nos surpreendendo com a sua escrita, concreta, enxuta e de confronto. Sim, muito da nossa literatura moçambicana é poética, profunda nas descrições, mas a de outros países africanos de expressão inglesa, ela é directa e frontal na abordagem, confrontando problemas sociais um pouco incómodos, como o racismo que às vezes se esconde nas coisas simples do dia-a-dia.
7. A nona pata da aranha, Leite de Vasconcelos
Esta menção é também um manifesto pela reedição dos clássicos. Apanhei o livro no meu alfarrabista e devorei-o num instante de pequeno (em número de páginas) que é. Foi uma jornada e tanto. Curto, divertido, satírico e político. Há pouca coisa assim ultimamente, algo que nos faça rir ao infinito, pelo ridículo que são as coisas que acontecem na nossa política e, sobretudo, as pessoas que cumprem as “orientações que desorientam” (Craveirinha). Vasconcelos é mesmo o tipo que deu o “pin” que desencadeou uma revolução que derrubou o fascismo. Aqui, ele escangalha a organização de Estado e como ela actua sobre as vidas das pessoas no pós-independência. Está aí mais um livro para reler numa altura que se volta a falar de “tribunais populares”. Aliás, a não reedição deste tipo de livro faz-nos adormecer no esquecimento. Provavelmente a história do país esteja escrita com maior honestidade na ficção, então, reeditem-se os clássicos, tal como foi com “Terra Sonâmbula” (Mia Couto), “Nós Matamos o Cão Tinhoso” (Luís Bernardo Honwana), entre outros.
8. Criação do Fogo, de Álvaro Fausto Taruma
É seguramente dos melhores poetas destes tempos. Lê-lo é sempre um prazer. Um poeta de apurada estética, um cronista, um perito da alma das coisas, Taruma consegue chegar aos quatro cantos da palavra e, como se não bastasse, ainda faz intervenção social. Incansável na busca do termo certo das coisas, incerto que se mostra na sua capacidade de descrever todas as vicissitudes. Este poemário de Taruma é uma revelação em cada texto.
9. A Coisa à Volta do Teu Pescoço, de Chimamanda Ngozi Adichie
Tenho uma grande paixão pelo conto. Por essa capacidade de contar as estórias, metendo-as todos os ingredientes sem se extender. Esses contos de Chimamanda são relatos feitos devagar, numa estranha falta de preocupação com o tempo (curto) que muitas vezes norteia o conto. Mas é uma viagem. Entre a memória e a observação aos fenómenos, somos chamados a não perder de vista o valor humano, independentemente dos acontecimentos. Uma escrita activista, mas com o devido cuidado para não cair no efémero. As narrações na primeira pessoa são ainda mais fascinantes. É possível com esses contos encontrar elementos que ligam às outras obras da autora, como por exemplo, o romance “Meio Sol Amarelo”, que só li em 2023. Eu e as manias de chegar tarde à festa.
10. Névoa na Sala, de Mélio Tinga
Falar deamigos é-me difícil. Falar de um livro que saiu no mesmo dia, na mesma hora com o meu “Mutiladas” só torna a missão impossível. Por isso vou ser sucinto, quando se fala de guerra, das tensões sociais, foca-se na população civil e nos danos humanos e colaterais, Mélio virou-se para os danos mentais, para a névoa que cobre as vidas dos que empunham as armas e atiram nos outros, por cumprimento do dever.
Por Eduardo Quive