Georges Perec – escritor francês da segunda metade do século passado – escrevia com o próprio sangue, recorrendo a sua múltipla visão filosófica sobre a vida. Não conheço (ou ainda não li) outro escritor que melhor descreve o consumismo enquanto uma doença originada pelo capitalismo. A prova disso reside no romance “A vida: Modo de Usar”, um quebra-cabeças que se debruça sobre coisas ínfimas patentes num apartamento ou num super-mercado, coisas aparentemente banais para constar de um livro.
O homem não deixava nada de fora, descrevia inclusive o vazio, entrecruzando várias histórias entre vizinhos do mesmo andar, interligando personagens complexos e jovens estúpidos que acreditam que o capitalismo lhes dará tudo. Tudo descrito ao último detalhe. Como se o protagonista da narrativa fosse a descrição. Tais descrições só as consigo comparar com as de Albert Camus em “O Primeiro Homem” – este inacabado, porém nostálgico e inquietante romance autobiográfico.
Conheci Perec através de “A vida: Modo de Usar”, e depois fui ler “As Coisas.” Mas quando li “Um Homem que Dorme” fiquei sem palavras, mergulhado numa total confusão de ideias sobre a escrita, na tentativa de perceber como se constrói uma confusão existencial em forma de livro.
Perec, considerado um dos mais importantes romancistas franceses do Pós-Segunda Guerra Mundial, era ligado ao movimento literário OULIPO (L’Ouvroir de Littérature Potentielle/ “Oficina de Literatura Potencial”), juntamente com Italo Calvino, Raymond Queneau e outros.
Alguns estudiosos chamaram-no “filho” de Kafka “por ter também uma certa visão do mundo em que o labirinto e o puzzle são figuras dominantes”.
A partir da comparação entre ambos, observo que a metamorfose de Perec reside nos seus personagens desobedientes. Os personagens de Perec desviam-se do plano traçado nas preliminares da narrativa, mudando plenamente de comportamento.
Em “Um Homem que Dorme”, o leitor é tomado por inesperadas acções e transformações. No entanto, são as ligações dos momentos da narrativa que levam o leitor à essência da transformação, e daí surge a seguinte questão: em que medida se justifica a metamorfose?
Em “Um Homem que Dorme”, Perec narra a vida de um estudante universitário desapontado com a sua existência e com o sistema que rege as coisas. E como consequência desse desapontamento, surge-lhe uma soturnidade profunda, levando-o a abandonar os estudos. A sua rotina passar-se-á a resumir em leitura e dormir no seu pequeno quarto, uma espécie de masmorra com uma bacia de água ao lado da cama. Ler, comer e dormir, não sair do quarto e não falar com ninguém passam a ser as acções que definem a rotina do jovem.
De rompante, o narrador diz-nos que o jovem decidiu sair do quarto para visitar os pais, que residem numa zona rural. Chegado lá, o nosso protagonista tranca-se na velha biblioteca do pai, onde relê alguns livros que os lera na infância. Constatando que nem o resgate do passado é suficiente para dar sentido à existência, o jovem retorna ao quarto, e, na sua cama, ao lado da bacia de água, come, lê e dorme novamente.
Obviamente, resgatando a ideia da metamorfose kafkiana, neste personagem observa-se Gregor Samsa, o homem que numa bela manhã acorda transformado num insecto repugnante, incapaz de sair do quarto para o trabalho. O personagem de Perec iguala-se ao de Kafka, que, mesmo transformado em insecto, mostra-se indignado com a sua existência e com o sistema que o escraviza para sustentar-se a si próprio e à família.
A grande transformação, com certeza, revela-se quando o protagonista de Perec constata que, sim, a vida é um absurdo e não faz sentido, entretanto a apatia, o sedentarismo, a inércia, o silêncio, o mutismo, também não constituem solução que justifique o absurdo da existência. Na filosofia de Nietzsche, este protagonista “perequiano” é um autêntico super-homem, pois ao desmascarar a realidade – enquanto uma verdade inquestionável – o que resta é NADA. A moral que se atribui a vida é uma mera convenção social. Não existe verdade, não existe moral.
A questão é: a vida não faz sentido, e daí?
Perec, com o seu personagem, responde nestes termos: a vida é um verdadeiro absurdo, mas a indiferença, a soturnidade e o isolamento, não constituem solução para a perfeição da mesma. Ou por outra, a vida e o sistema são absurdos e não fazem sentido, mas, mesmo assim, o nosso dever, como seres humanos, é viver, participar das acções sociais, opinar e caminhar sempre para frente, amando o que amamos, porque não existe certeza sobre nada.
Por Albert Dalela