1. Um nascer-do-sol que ressuscita os homens para o labor e o lazer. Uma floresta cheia de majestosas árvores, penetradas por feixes de luz. Um passarinho que floresce e uma flor que voa ao ensejo de um beijo. Cadeias de montanhas serrilhadas, com seus picos nevados a brilharem ao sol. Mares encapelados, agitados pelos ventos. Um morrer-do-sol que cobre inteira a terra de luto. Um céu nocturno, pontilhado de estrelas. Tudo isso nos sacode, como um chamado à reverência: somos efémeros, mas participamos de um espectáculo imenso. Essas coisas grandes nos animam, nos enchem de assombro.
2. Uma mariquita-estriada – diminuto pássaro – a voar bem alto sobre o Atlântico, em direcção às cabeleiras de África. A uns seis mil metros de altitude, pega um vento predominante que o faz dirigir-se à América do Sul. Guiado pelo seu instinto migratório, segue a sua trajectória por vários dias, isso por mais de três mil e oitocentos quilómetros. É muita coragem para somente vinte e um gramas de penas! Essas coisas pequenas nos enchem de admiração e de espanto. Essas coisas pequenas nos esmagam de humildade.
3. Os morcegos que empregam o sonar. As enguias que geram electricidade. As gaivotas que dessalinizam a água do mar. As vespas que fabricam papel. As térmites que instalam condicionadores de ar. Os pirilampos que cagam a Via-Láctea por sobre a noite de um jardim. Os polvos que empregam a propulsão a jacto. As aves que são tecelãs ou que constroem prédios de apartamentos. As formigas que cultivam hortas, ou costuram, ou criam gado. Os vagalumes com faroletes inatos. A natureza é uma oficina de maravilhas. Admiramo-nos de tal engenhosidade.
4. A vida, quando se aproxima do exício, não raro é nas coisas simples concentrarmos a nossa atenção, coisas que amiúde ignoramos ou julgamos como triviais. Um arco-íris instalado no rosto de quem amamos. Um toque de mão materna a medir a febre na testa de um filho. Uma frase singular pela tensão de sua expressividade. Um rol de pétalas e sépalas – se calhar, também algumas brácteas e alguns espinhos. As pulsões que nos movem os músculos em função de outrem. Um verso pungente derivado de um refrão no canto de um passarinho. A memória dos defuntos que nos não morreram. A trajectória de uma lágrima livre. Os raios de sol ao alcance da pele. São coisas simples, cuja conjunção é comum nos últimos suspiros que dedicamos à configuração do sentido da nossa existência. À porta do fim, descobrimos que viver não foi apenas acumular grandezas, mas também recolher esses cacos de luz — insignificantes, comoventes, suficientes.
5. São factos amiúde ignotos, mas [que] cuja conjunção compõe cada nó que fazemos na linha do tempo, de modo a dar algum sentido à nossa existência. Quiçá seja precisamente nessas fracções de beleza e simplicidade que se pode achar o valor último da vida. No entanto, quando reflectimos sobre as coisas grandes que nos assombram, as coisas pequenas que nos suscitam admiração, as coisas engenhosas que nos fascinam e as coisas simples tardiamente apreciadas, a que/quem as devemos atribuir? Como podem tais coisas ser explicadas? De onde provêm? O que são estas coisas todas? Por que [nos] ocorrem? Não sei ainda as respostas próprias para essas questões, mas tenho a nítida impressão de que devem ser muito óbvias. Todavia, enquanto o tempo nos afoga em perguntas, talvez devamos apenas inclinar-nos, como a flor ao vento, e aceitar que a beleza é tanto pergunta quanto resposta. Diante da morte iminente, a celebração desses factos pode ser dos mais sagrados de nossos actos. Um hino sem letra nem voz, manifesto na Linguagem contemplativa do êxtase.
Por Ericson Sembuer