Cada momento histórico possui seus próprios fenómenos, em que não se devem tentar compreender os mesmos longe de todas as vicissitudes históricas e específicas que as caracterizam. O cancelamento também não é um fenómeno isolado, e toda tentativa de isolar e dar uma independência a isso é uma abstração, não é concreto. Revela-se necessário o sentido histórico na análise de certos eventos.
A minha razão não tem a finalidade de julgar de bom e/ou mau um determinado evento, coisa ou fenômeno social, como o cancelamento ou a natureza humana. Mas sempre tive o desejo de compreender, ver, tatear profundamente todas essas coisas para analisar os seus limites, as suas origens e as bases que as sustentam. Em que chão se assenta uma determinada prática? Essa é a minha questão predilecta, e não se é bom ou mau. Ocupo-me, antes de tudo, em ver até onde uma certa prática influencia e afecta toda a conjuntura social. É coisa de ociosos procurar julgar certos fenómenos sociais, como o cancelamento, porque, pelo bem da objectividade científica, o próprio bom e mau ainda não foi catalogado, usa-se de forma pessoal, individual e particular.
Entre fraude, mortes e repressão, que ocorrem desde 2023 nos períodos eleitorais, só para contextualizar, o povo pede um posicionamento dos artistas e figuras públicas. Na verdade, não é de um posicionamento que eles exigem, querem que se pronunciem sobre as injustiças, mortes e tudo que tem acontecido nos últimos tempos. Exigem que artistas repudiem a polícia, no mínimo. Também querem, implicitamente, que repudiem a Frelimo. Primeiro que, para mim, não passa de uma atitude errada e, depois, de desespero das massas. Primeiro porque é errado obrigar qualquer um que seja, a ser empático e a adoptar certas concepções ideológicas, pois parece colonização, como também parece desespero do povo em não saber como vai fazer pressão ao governo e entidades competentes, senão de pessoas que têm muita influência e expressividade no país, nesse caso os artistas.
Contudo, deve-se ver que esse fenômeno de cancelamento não é novo em Moçambique, talvez tenha um outro nome. Isso parece uma forma de exclusão, só para começar, e o estado moçambicano nunca foi inclusivo. O cancelamento, nesse sentido, é uma forma de excluir, de fazer com que, os que possuem alguma influência, não tenham mais. E a exclusão sempre teve esse objectivo, historicamente, fazer com que um indivíduo ou grupo que tenha ideologias e comportamento contraproducentes ao que domina não tenha influência, e elimina-se a pluralidade ideológica e comportamental. Fazer com que alguém não fale, não opine, não respire, e quando o fizer, o faça longe das pessoas que se possam influenciar. Já houve grupos excluídos no mundo, mulheres, crianças, homossexuais, negros, etc.
Fazer com que uma mulher se cale perante uma multidão, significa também restrição de sua influência para com os outros, principalmente as massas. Não se pode dar uma ideia em que o patriarcado considera intransigente e subversivo, que coloque toda a sua posição enquanto dominador em risco. Contudo, as exceções sempre existiram para mulheres que se submetem complemente ao saber patriarcal, que, usando a sua influência, iria consolidar a sua ideologia. Todo mundo, no final, tem influência um sobre o outro. Uns com mais influências do que outros, naturalmente. Então o colocar a mulher no segundo plano é uma forma de restringir esse poder de influenciar, amortecendo-o, e usa-se apenas para agendas alheias, ou que agradem o que domina. Isso é histórico. Por vezes, precisa-se da história das mulheres dentro da história da humanidade porquanto as privações que viveram não são idênticas às dos homens. Essa privação da fala, de opinião, de influenciar, de dizer, de comentar, é um cancelamento, e isso é relatado até pela bíblia onde as mulheres deveriam se manter caladas dentro da igreja. No final, era só para evitar contrariedades que advém das opiniões, de perspectivas e ideias de seres que se dizem diferentes – as mulheres. Essa mesma onda de privação aconteceu de igual forma com os homossexuais e os negros. É que se têm a noção de que uma palavra mobiliza, movimenta, ajunta e separa, então foi sempre movido esforços para que os negros não pudessem se expressar e opinar, o mesmo que aconteceu com as mulheres. Cancela-se quando se exclui.
Sendo o cancelamento uma forma de excluir, prova-se, desde já, que o cancelamento é coisa de tradição em Moçambique, e talvez no mundo. Mas, ele existe, acontece, e é um fenómeno diversificado, difícil de ser analisado, rastreado e manejado em suas diferentes facetas. Possui características um pouco e escorregadias, e isso dificulta a sua dissecação natural e profunda. Contudo, acho que, até aqui, vejo duas formas distintas de cancelar: o cancelamento sistemático/estrutural e o cancelamento massivo. Apesar de serem operativamente distintas, elas compartilham similaridades intrínsecas que as aglutinam e as fazem caminhar juntas.
Mas, para entender essa similaridade é necessário que se entenda a base em que se sustenta a mesma. Esse cancelamento assumido exactamente como tal e que mais se propaga diariamente nas redes sociais é o massivo, e é por essa via que, ao se falar de cancelamento, apenas se pense nesse, o massivo/popular. Nessa forma, o cancelamento é levado a cabo pela massa popular. O que motiva, bem no fundo, o cancelamento, é essa questão de diferenças de posicionamento e ideologia, no nosso contexto, político-partidário, em casos mais específicos, a falta de empatia e incoerência comportamental. E o cancelamento é uma tentativa de fazer com que, já o disse, alguém não tenha influência. É uma forma de silenciar, de tornar mudo e inaudível. É um jeito de fazer com que ninguém lhe ouça nem veja. Já que, actualmente, toda forma de influência acontece nas redes sociais (por isso temos influencers digitais), então os melhores lugares e estratégicos para cancelar são as redes sociais, porque, também, tem ares de não violento, mas parece justo. Nas redes sociais, cada like oferece mais alcance. Cada like (gosto) clicado é um poder de alcance que as pessoas têm, ou são oferecidas. Com mais likes, alguém pode alcançar mais pessoas. O dislike visa, essencialmente, o contrário do like, que é retirar esse poder outrora oferecido por usuários das redes sociais. Nesse mesmo sentido, há o exemplo de recomendação de páginas que se tornou viral nos últimos dias, uma forma achada para fortalecer uma conta/página no Facebook, que é, hoje em dia, um lugar de promoção democrática da opinião sobre tudo, principalmente política, nos últimos tempos. O cancelamento serve para restringir e limitar o alcance que as pessoas têm, ou mesmo para as tornar mudas e fazê-las desaparecer do mapa, acusando ainda um estado de ‘intolerância’ face ao diferente. Contrariamente ao que se afirma por aí de forma parcial, a intolerância é cultural.
O cancelamento é uma tecnologia criada para fazer com que o músico X e o influencer Y não tenham mais o poder de influência, para que a sua opinião não seja ouvida, para que não tenha alcance algum, em poucas palavras, para limitar o seu raio de alcance, silenciar. Talvez, a palavra silenciamento seja um sinônimo de cancelamento porque ambos podem ter a mesma finalidade. Conforme havia avançado, as pessoas só olham para esse cancelamento ou silenciamento virtual, que acontece nas redes sociais, em que os que mais sofrem com isso são os artistas e influencers digitais, que tem nas redes sociais um espaço de se fazerem ouvir sem “limitações”. É por esse raciocínio que algum cantor moçambicano havia dito que os artistas não precisam mais ir atrás de apresentadores e canais televisivos porque as redes sociais fazem o que eles fazem, que é publicitar e expor o seu trabalho.
Quando não se aceita admitir certos indivíduos ou grupos por pertencerem a ideologias diferentes da que domina, também pode ser visto como uma forma de cancelamento. É uma forma de fazer com que o diferente não tenha expressividade, de limitar a influência do diferente, em outras palavras, silenciar. E vê-se, por exemplo, o silenciamento que partido RENAMO e seus membros sempre sofreram. No ano de 2023, houve um caso onde alguns professores em Inhambane, depois de apoiarem a RENAMO nas eleições, foram enviados para dar aulas nas áreas rurais. Isso limita ou restringe a influência porque, sabe-se, é na cidade em que as “coisas” acontecem, principalmente política e economicamente.
Assim sendo, além dessa forma de cancelar, cancela-se estrutural e sistematicamente. Essa forma de cancelamento é sobre toda uma estrutura que funda ou faz parte da sociedade, nação e estado. Isso não é público, se é público, não é assumido por quem promove o cancelamento. É implícito, silencioso, e funciona por dentro, nas áreas fulcrais e fundamentais de ser cidadão, é por aí onde pessoas são silenciadas. O cancelamento estrutural é muito mais letal, porque não é intermitente, é contínuo e não esquece. Nesse caso, o sistema serve de uma rede que deixa certos peixes para o lado de fora.
Por outro lado, há o caso de Azagaia, que foi sabotado na universidade para que não pudesse graduar, e acabou por desistir de licenciar. Isso foi motivado por questões políticas, pois este era contra esta forma actual de governação e regime. O que é que a ausência de um diploma pode provocar? Tentavam limitar a sua influência porque, sabe-se, retirando-lhe um certificado, retiram também uma “certifição” académica que podia oferecer-lhe outra influência. Considero isso uma forma de cancelamento sistemático, que é sempre feito nas surdinas, mas é eficaz e duradouro.
O cancelamento não deve só ser restringido ao silenciamento nas redes sociais, porque a vida não só acontece nas redes sociais. Esse fenômeno, apesar de não ter sido apelidado dessa forma, é histórico e tradicional em Moçambique. Isso também é motivado pela intolerância, principalmente política. Vejo essa questão de cancelamento como uma forma de retirar o poder de opinião às pessoas, também. Essa restrição verifica-se nos canais televisivos, por exemplo, e outra mídia. Os comentadores, artistas, e outras individualidades que têm uma outra opinião ao que é aceitável dentro do governo, são limitados por conta do seu posicionamento. Quando se retira o poder de opinião a alguém, então se silencia essa pessoa, retira-se o espaço de exercer a sua cidadania, que é dar alguma opinião.
Ainda um tanto sobre o cancelamento massivo, existe cá, ainda que nas surdinas, talvez porque acontece para uma camada que não tem holofotes (para anónimos), um fenômeno que se generaliza, em que os artistas e influencers, as figuras públicas da pop culture, principalmente, eliminam, restringem, e desactivam comentários e bloqueiam os seus seguidores que comentam o que é, para esses, desrespeitoso. Estaríamos aqui perante um cancelamento dos anónimos pelas figuras públicas? De uma certa maneira, há cá também restrição de comentários que são considerados desrespeitosos.
Mas, do outro lado, se há um cancelamento de massas para com as figuras públicas e um possível vice-versa, será que poderá haver um vice-versa no cancelamento estrutural? Como seria explicado o queimar das esquadras pela população? As ameaças de acabar com as estruturas públicas como o tribunal, a PGR, a comissão nacional de eleições e o edifício do conselho constitucional podem ser vistas como uma tentativa de cancelamento estrutural reverso? O que acontece, afinal, quando as massas decidirem restringir a influência desses órgãos públicos, de retirar opinião, comentário e decisão desses? Apenas pontos de interrogação que nos levam a pensar sobre essa cultura de cancelamento, e que pode ser alargada.
Fica-se com mais questões do que respostas, naturalmente, mas a certeza que existe é que o fenómeno cancelamento/silenciamento não é algo novo. Essa situação de silenciamento pode assumir faces mais agressivas, como assassinatos de indivíduos como Paulo Guambe e Elvino Dias, algo recente, Siba Siba, Carlos Cardoso, e outros. A razão da morte desses indivíduos todos listados é mesmo o cancelamento: queria-se acabar com a sua influência, com a opinião.
Por Domingos Mucambe