Com os olhos, absorvo o horizonte. Saboreio o extenso verde. Bebo os sais minerais que habitam as nuvens. Nas pupilas, o rio flui azul, imensurável. As algas são escadas para o céu; gritam:
“O mundo é um tecido com os fios dourados de enigmas.”
Não contraponho. Bebo o rio com os olhos. É salgado. Eis o milenar mistério do mundo: os olhos são também máquinas de degustação.
01.06.2023. É inverno. O sol dorme até tarde. Os peixes também. Os hipopótamos já não habitam os rios. Têm medo das máquinas da morte.
Penso nos inalcançáveis limites desta paisagem. Nas mãos que mantêm imóveis os ossos da linha imaginária. Sou agora parte dela. Sou paisagem. Um inominável resquício do vento. Molécula hasteada nos ombros do rio. Insípida ilha enclausurada nas pálpebras.
Com a íris, degusto o vento. É azedo. Cansou-se da vida.
“É trabalhoso mapear velocidades e partilhar quilometragens com o firmamento”, diz-me ele. Sabe que gosto de palavras que só se escutam com os olhos. Palavras que transcendem a capacidade gustativa da língua: velocidade! Diluir-se para dentro do próprio corpo. Estou aqui e em todos os cantos desta paisagem. Eis um outro mistério: os olhos são também máquinas de teletransporte; os órgãos mais velozes no corpo. Full stop!!
Saio da paisagem. Entro no jornal. Tacteio-o com a pupila. Os olhos salivam, prontos para embocá-lo. O jornal é fonte de vários estímulos e sensações. A notícia é saboreada pelos olhos ou ouvidos e canalizada ao corpo – a máquina mais complexa do mundo.
Devoro o jornal com os olhos. Mastigo-o, de uma ponta à outra. É amargo. Instiga náuseas e lágrimas. Vejamos:
“Jogadores do Matchedje sem salários há meses.”
“Menor morre supostamente envenenada pelo pai em Zambézia.”
“Sudão: 60 crianças morrem num orfanato por falta de comida.”
“Galal al-Behairy, poeta egípcio, em greve de fome deixa agora de beber líquidos. ”
“Zimbabweano e Português detidos em Manica na posse de armas de calibre pesado e diverso material bélico.”
É urgente combater as máquinas da morte. Travar a destruição do pensamento. Resgatar o mundo do colapso.
Largo o jornal. Os olhos transportam-me de volta à paisagem. Quero viver nela, eternamente. “O que mais há na terra é paisagem”, escreveu Saramago. E as algas continuam a gritar:
“O mundo é um tecido com os fios dourados de enigmas.”
Full stop!!
Fernando Absalão Chaúque
In “Diário”