Partilho abaixo os 8 livros que mais me impactaram em 2024.
1.Levantado do Chão
Começo por este excerto do livro Levantado do Chão, de José Saramago, talvez porque iniciei a leitura em 2024 e concluo-a agora, nesta primeira quinzena de 2025, entre momentos de prazer e esforço: “Mas para ganhar a segunda, tem de se começar por lutar pela primeira.” (pág. 240).
Este livro revelou-se uma espécie de receita para os tempos que temos vivido, traduzindo inquietações profundas e fornecendo alento para resistir às adversidades. Permitam-me, sem exageros, compartilhar uma passagem desse extenso e notável romance, onde Saramago nos desafia a explorar as mazelas de uma sociedade oprimida. É uma obra que denuncia, com intensidade, a tirania de um sistema que subjuga a maioria desprovida de recursos. E é nesse contexto que o título Levantado do Chão ganha sua justificação: mais que um romance, é um grito contra a injustiça, uma convocação para a resistência.
Ao lê-lo, não pude evitar a comparação com outras obras igualmente impactantes. Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, que tive o privilégio de explorar no ano passado, destaca-se pela magia de sua narrativa, embora a recente adaptação para uma mini-série na Netflix tenha frustrado muitos, reduzindo a grandiosidade do texto a uma experiência insípida. Mas não é esse o foco agora.
Outro título que merece menção é Matigari, de Ngũgĩ wa Thiong’o, uma obra que, embora mais directa e acessível em sua linguagem, carrega a mesma essência de revolta contra sistemas opressores. Esses livros compartilham uma característica em comum: apresentam personagens emblemáticos que simbolizam a luta por honra e justiça. Vemos António Mau-Tempo, em Levantado do Chão; Coronel Aureliano Buendía, em Cem Anos de Solidão; e Matigari, na obra homónima. Todos se erguem como figuras marcantes na resistência contra sistemas de opressão.
Para aguçar ainda mais o interesse por Saramago, em Levantado do Chão, compartilho um trecho poderoso que sintetiza a força de sua narrativa: “… mas o caso foi ao ponto de ouvirmos armar as metralhadoras e a partir daí já não sabíamos o que ia acontecer, falo por mim que senti um arrepio na espinha, e se for verdade, e se disparam, e se isto é aqui uma sangueira por causa de um prato de sopa, valerá a pena? Não é que estivéssemos a fraquejar, mas nestas situações não se pode parar o pensamento, e então na formatura, nunca se soube donde, nem os camaradas que estavam perto disseram, ouviu-se uma voz, muito sossegada, como se estivesse só a perguntar pela nossa saúde: ‘Camaradas, daqui ninguém arreda pé.’ E outra voz, do lado oposto: ‘Podem disparar.’ E então nem sei como aquilo foi, ainda hoje me dá vontade de chorar, toda a parada gritou, era um desafio: ‘Podem disparar.’ Estou que não iriam fazer fogo contra nós, mas se o fizessem, sei que tínhamos ficado ali todos, e essa é que foi a nossa vitória, não foi ter melhorado o rancho, que às vezes a gente começa a lutar por uma coisa e acaba por ganhar outra, e esta é que era a melhor das duas. Fez Antônio Mau-Tempo uma pausa e depois acrescentou, muito mais sábio do que a idade que tinha, ‘Mas para ganhar a segunda, tem de se começar por lutar pela primeira’.”
- Cem Anos de Solidão
Sobre Cem Anos de Solidão, é justo dizer que não se trata de uma leitura simples. A construção dos personagens, com nomes que se repetem ao longo das gerações, pode confundir o leitor menos atento. No entanto, a narrativa é fascinante em sua complexidade. A história da família Buendía, que funda com esforço a aldeia de Macondo, reflecte as angústias de um povo que, mesmo diante de dificuldades, vê-se oprimido por um governo que insiste em impor suas normas. Aureliano Buendía, inicialmente reservado e tímido, assume as armas para defender os direitos dos nativos, protagonizando uma luta que espelha o embate eterno entre conservadores e liberais.
Estes livros, cada qual à sua maneira, nos convidam a reflectir sobre as engrenagens sociais que perpectuam a opressão e inspiram-nos a buscar as pequenas e grandes vitórias que só a resistência pode alcançar.
- O Olho de Hertzog
Também fez parte das minhas leituras de 2024 a obra O Olho de Hertzog, de João Paulo Borges Coelho, uma das vozes mais emblemáticas da prosa moçambicana contemporânea. Trata-se de um livro que oscila entre o histórico e suspense, e não o vejo como um policial, segundo descrito na capa: “Um policial brilhantemente construído”.
Reconheço e admiro o fôlego literário de Borges Coelho, um autor que domina a arte de trabalhar as palavras com precisão. Contudo, nesta obra em particular, senti certo cansaço diante do excesso de descrições dos locais de Lourenço Marques. Em alguns momentos, o texto aproxima-se de um relato jornalístico, carecendo da criatividade narrativa à qual o autor já nos habituou em outras obras.
Apesar disso, O Olho de Hertzog apresenta duas figuras marcantes: Hans Mahrenholz, um militar cujas memórias da guerra assombram seu consciente, e Albazine, um jornalista inquieto e crítico do regime. A relação de amizade entre os dois permite que cada um enfrente os próprios traumas, num enredo que combina introspecção psicológica com as tensões políticas da época.
Mutiladas, de Eduardo Quive, é uma obra escrita a tinta e sangue. Um livro que denuncia, com crueza, as diversas mazelas que dilaceram a sociedade. Mais do que um retrato carregado de lamento, a narrativa nos desafia a refletir profundamente sobre nosso papel na sociedade e as escolhas que moldam nosso destino.
As Confissões da Senhora Professora, de Sra. Daniels, é uma obra ousada que aborda, de forma provocativa, temas controversos como sexualidade, pudor e o papel da mulher enquanto ser sensível, entrelaçado em traumas psicológicos e amores proibidos. Trata-se de uma coleção de contos onde, em todos eles, a figura da professora emerge como o centro das narrativas.
Daniels possui uma escrita poderosa e directa, chamando as coisas pelos seus devidos nomes, sem rodeios. O elemento mais marcante que permeia essas histórias é o erotismo, que dá tom e intensidade à narrativa, explorando com profundidade os dilemas e as complexidades do feminino.
Nuno Júdice, com Uma Colheita de Silêncios, obra vencedora do Prêmio Oceanos 2024 na categoria de poesia, chegou até mim como um presente do amigo português José Manuel Barbosa. Curiosamente, no mesmo conjunto, estavam também o seu livro Monique e Outros e o meu Os Dedos de Agonia, vindo do Chile, vencedor do 1º Prêmio Internacional de Poesia Lusófona. Tudo isso antes mesmo de se saber quem seria laureado com o Oceanos de 2024, onde nosso conterrâneo Álvaro Taruma também figurou como finalista.
Uma Colheita de Silêncios explora uma ampla gama de temas, mas o que mais impressiona é sua escrita refinada, simples e carregada de um nostálgico encantamento – uma magia que só os grandes poetas conseguem criar. Trata-se de uma obra que recomendo com entusiasmo, repleta de poesia sólida que transforma o quotidiano em puro pasmo.
- Monique e Outros Poemas
Apresento-vos também o livro Monique e Outros Poemas, de José Manuel Barroso, uma obra que nos reconduz ao ponto de partida, trazendo a sensação de um constante regresso ao lar. Talvez a infância seja a maior ferramenta de construção dos poetas, e Barroso a utiliza com maestria.
Sua poesia é bela, simples e sintética, revelando as coisas mais comuns, os lugares tangíveis e possíveis de refúgio. Um exemplo claro está no poema:
“Sobre a difusa tarde/ alguém que me leve agora/ sobre a difusa tarde/ da encosta da Fóia/ a ver o mar além do horizonte/ e o sol de vinho deitado/ por detrás do mar/ e a desfazer a trança/ da sombra do castanheiro/ onde a malva germina.”
Barroso nos oferece um convite ao reencontro com o essencial, transbordando sensibilidade e lirismo em cada verso.
- A Fada Oriana
A Fada Oriana, de Sophia de Mello Breyner Andresen, com ilustrações de Natividade Corrêa, é um presente encantador para quem deseja inspirar uma criança a sonhar, explorar a beleza e, ao mesmo tempo, compreender o valor da amizade e da compaixão.
- O RAP: A (Des)Marginalização do Rap de Intervenção Social em Moçambique, sua Contribuição no Exercício da Cidadania e na Formação do Homem
De certo modo, o fato de estar envolvido na edição de alguns livros me aproximou de materiais diversos de vários autores. Embora possa parecer suspeito elogiá-los, pela riqueza que representam, gostaria de sugerir a leitura da obra de Lázaro Marcos Januário, intitulada Rap O RAP: A (Des)Marginalização do Rap de Intervenção Social em Moçambique, sua Contribuição no Exercício da Cidadania e na Formação do Homem.
Trata-se de um livro reflexivo, dividido em duas partes fundamentais: Geral e Especial. Na primeira, o autor explora a origem do rap e sua disseminação em Moçambique, contextualizando sua trajectória no cenário nacional. Já na parte Especial, por meio da análise de letras seleccionadas, reflecte sobre questões que atravessam a sociedade, como o fim das penas (teorias absolutas ou da retribuição e teorias relativas ou de prevenção), a religiosidade, história e temas sensíveis como o suicídio (egoísta, altruísta e anímico), além de outros aspectos sociológicos.
Uma leitura instigante e indispensável para quem busca compreender as múltiplas dimensões do rap como ferramenta de cidadania e transformação social.
Por Jeconias Mocumbe