Como alguém cuja profissão integral é ler – por vezes algo nada deleitoso – dificil é amealhar tempo para uma leitura guiada pelo prazer. Ainda assim, algumas leituras em 2024 valeram-me a pena, ou melhor, valeram-me o prazer, algumas me valeram a amargura e o horror. Entre elas, destaco estas 10:
- Pita Kufa – Carlos Paradona Rufino Roque
Carlos Paradona é, sem dúvidas, um dos melhores contadores das histórias das etnias sena e nyungwe. O que lhe particulariza são os detalhes com que ele passa o testemunho sobre o que colheu da cultura central do país. Em “Pita Kufa”, eis que lemos sobre o que é o ritual muitas vezes confundido com “Kutxinga”, do sul de Moçambique. Ao fim da leitura, o autor surpreende-nos com uma provocação sobre o mesmo ritual, marcando a tensão entre a tradição e a modernidade. Nesse final, nota-se traços de uma modernidade que parece buscar questionar o existencialismo da tradição. O leitor definitivamente vai prender-se ao romance pela linguagem imersiva e proficiente do autor, com alguns intervalos de humor.
- Gole de Lâminas – Albert Delela
Trata-se, aqui, de uma narrativa autobiográfica. O protagonista é um personagem-tipo que incorpora o protótipo de uma classe social desprivilegiada, faminta e mendiga, mas, paradoxalmente, possui uma riqueza intelectual, notável através dos seus monólogos, da minúcia com que analisa o ambiente que o rodeia. Isto faz-nos perguntar onde terá o protagonista aprendido tamanho saber, uma vez que não há evidências de que o personagem tenha repertório universitário ou instrução escolar aturada. Fascinante! O saber não tem estracto social. É uma pontual sugestão de leitura para o falocrante!
O retrato sobre a luta de classes narrada na obra é um tema actual, há muito provocado por Marx e Engels, e há muito mais tempo antes destes. O livro é de um volume extenso, arriscado para um livro de estreia de um escritor jovem, sob o risco de incorporar “excedentes da narrativa”, mas Dalela, neste romance, conquista-me pela filosofia com que aborda os seus temas, incitando o leitor à reflexão, através da sua imerção nas várias críticas e questionamentos arrolados pelo protagonista.
- O Pouso do Casco – Lino Mukurruza
Leio poesia com pouca frequência, confesso. Sou um campestre diante desse refinado género literário. Ainda assim, fico fascinado quando desfruto da musicalidade e intimismo na poesia de um Eusébio Sanjane ou de João Baptista; da arquitetura sintáctica e metáforica de um Óscar Fanheiro ou Álvaro Taruma; do minimalismo de um Gibson João, entre tantos outros artífices poetas deste meu Índico. “O pouso do casco” de Mukurruza encantou-me pelo trato do verbo – no sentido evangélico – feito de forma tão harmoniosa e contextual, onde a sua poesia ganha objecto, lembrando o que dissera uma fez Confúcio: “se os nomes não estiverem correctos, a linguagem não tem objecto”. É preciso que se escolha “correctamente” (no sentido da filosofia da linguagem) as palavras para que a linguagem vinque a sua intenção: comunicar. Lino fá-lo com proficiência, chegando a ir mais além à busca de uma ordem sequencial frásica própria, que não a canônica das gramáticas tradicionais.
- A Tormenta das Espadas (Livro 3) – George R. R. Martin
Este é o terceiro livro da Saga “The Songs of Ice and Fire”, que deu à luz um dos maiores e mais bem sucedidos fenómenos do cinema: a série Game Of Thrones. Confesso que a saga, em livros, tem sido uma escola literária para mim. O que me fascina na obra do Martin é a inteligência e mestria com que ele constrói o seu mundo ficcional, extenso geograficamente, com diferentes nações, culturas, línguas, sistemas políticos e económicos, histórias e conflitos. Nesse mundo habitam centenas de personagens que têm destaque no enredo, cada um com o seu perfil psicológico e social. A narrativa mocambicana, sob ponto de vista de focalização do protagonista, grosso modo, é monoprotagonista, ou seja, concentra-se na trajectória de um personagem-herói, sendo os outros secundários. Já em George Martin, assistimos a um universo multiprotagonista, costurando, para cada um desses protagonistas, um arco diegético próprio. E para garantir que o leitor visualize o seu universo ficcional através da palavra, Martin descreve com toda a minúcia os espaços, o perfil físico, psicológico e emocional de cada personagem, suas vestes, o odor da comida, os movimentos das lutas, as virtudes e os vícios, o genograma familiar, entre outros.
- O Diário de um Homem Supérfluo – Ivan Turgueniev
Turgueniev foi escritor russo da famosa Idade de Ouro da Literatura Russa – sec XIX. É tido como o primeiro escritor russo a abrir as portas da Literatura Russa para a Europa, afinal, por meio dele, outros escritores de sua época (Dostovieski, Tólstoi, Tchekhov, etc) passam a ser traduzidos, publicados e lidos na Europa.
Como a maioria de suas obras, o “Diário de um Homem Supérfluo” encanta pelo realismo, crueldade e nostalgia com que um idoso moribundo (o protagonista) narra a história de sua juventude. Nos últimos momentos de sua vida, atrelado ao seu penúltimo leito (a cama), o protagonista relembra o seu passado. Foi um jovem que buscou encaixar-se, mas sem sucesso, nos diferentes extractos da sociedade; e até tentou, fracassadamente, uma aventura amorosa. Não passou de um cidadão supérfluo, inútil, dispensável. Buscou utilidade, mas a sociedade ofuscou-lhe. É isto que ensina Turgueniev em suas obras: a condição de ser nada, a porrada que a vida dá aos nossos sonhos. Uma verdadeira chapada à nossa iludida importância, vaidade das vaidades. E quando findamos a sua leitura, acordamos da porrada para a lucidez. Terapéutico!
- As Máscaras da Verdade – Almeida Cumbane
Aqui temos uma das mais intrigantes narrativas moçambicanas feitas por um jovem. Almeida junta investigação policial, espionagem, fugas clandestinas, troca de identidades, e entre tudo isto, instabilidades amorosas. Só não gostei do final, tenho minhas preferências pelos finais avassaladores, bem ao estilo Turgueniev. Mas experiência de ler estas Máscaras foi emocionante e muito intrigante. Sim, Almeida sabe arquitectar uma história. Gosto deste tipo de oficina.
- Renascimento Africano – Ergimino Mucale
Tenho uma tusa incontrolável pela Filosofia, desde a clássica à contemporânea. E nos últimos anos tenho mergulhado, com alguma frequência, na Filosofia Africana. Ler a obra do Professor Ergimino foi de um despertar há muito adiado sobre o Renascimento Africano. Trata-se de um livro que apresenta, didaticamente, o percurso da discussão sobre o Renascimento Africano, aliado aos movimentos e aos pontas de lança mais sonantes responsáveis pelo seu surgimento e “consolidação”. Com muito rigor e cientificidade, o Professor Ergimino distancia-se do linguajar falocrático, adoptando o terra-terra, e apresenta-nos os argumentos e contra-argumentos dos movimentos renascentistas desde o século XIX, com Du Bois e Alan Locke, até os dias de hoje, com, por exemplo, Thabo Mbeki. Por fim, arrola algumas condições de debate para uma verdadeira libertação do pensamento africano. É um livro que quanto mais o lemos, mais nos apercebemos das dimensões das paredes da nossa prisão cultural e intelectual.
8. Saga D’Ouro – Aurélio Furdela
“Saga D’Ouro” integra-se num conjunto de Literatura moçambicana (Ualalapi, Ungulani Ba Ka Khossa; As duas sombras de um rio, João Paulo Borges Coelho; As Areais do Imperador, Mia Couto) que busca no passado um momento histórico que nos (de)compõe como nação. É que Moçambique, após a independência (1975), apenas era um Estado. Diante da multietnicidade e de traumas culturais subvertidos pelo sistema colonial, o Estado precisava de se formar como nação, buscar um passado que nos identificasse e nos unisse. Neste sentido, Saga D’Ouro explora uma das grandes epopeias moçambicanas (e zimbabweanas) do majestoso Império de Mwenemutapa.
Este livro permitiu-me revisitar um remoto passado do nosso povo, os seus conflitos políticos internos pela ambição de poder, as suas primeiras alianças comerciais e políticas com os portugueses e os árabes; e faz com que o leitor conclua: mudam-se os tempos, mas não mudam as vontades.
- Os Peregrinos da Sobrevivência (Prémio FFLC, 2024) – Panguana Junior
Tive o privilégio de aquirir este livro a partir do autor. Mal concluí a leitura, o livro desapareceu-me misteriosamente. Tive que fazer uso da minha torpe memória para comentar o livro. Uma das coisas que me surpreende quando leio jovens autores como eu, é a coincidência com que todos, nalgum momento, discutimos os mesmos temas: a família, a pobreza, os sonhos. O que nos distingue é a técnica, a focalização e algum grau de profundidade.
Muitos discursos romantizam a família como um lugar de resguardo e de protecção. Muitos romantizam a pobreza como humildade. Panguana Junior, sem dó nem piedade, apropria-se das outras definições mais desconcertantes e vexantes daqueles termos, trazendo para o leitor a cruel, mas esperançosa peregrinação de uma das milhares famílias existentes no mundo. A ambientação da narrativa chega a lembrar-nos do romance brasileiro “vidas secas” de Graciliano Ramos.
Outro tema que mereceu a atenção de Panguana e que foi do meu agrado é o da inversão dos papéis pai – filho na família. Nalgumas famílias, pais atribuem aos filhos a tarefa de estes susterem aqueles. Vivemos tempos invertidos!
- Dumba-Nengue – Lina Magaia
Lina Júlia Francisco Magaia viveu entre os anos 1945 a 2011. A escritora e política moçambicana vivenciou o período da luta pela independência de Moçambique e a trágica Guerra Civil. Seu livro “Dumba Nengue – Histórias Trágicas do Banditismo I” foi publicado a Janeiro de 1987 pela Imprensa Nacional, três meses após a morte do Presidente Samora Machel. “Dumba Nengue” é um recorte aterrorizante dos descalabros perpetrados por grupos armados não identificados, no período da Guerra Civil (1976-1992), mas que, conforme aponta a autora, eram pertencentes a RENAMO. Os títulos reflectem o terror: “pilaram-lhes as cabeças como se fossem amendoim”; “Um jovem assassino”; “Mataram o marido da Bertana como se matam os cabritos”; “Foram doze os pilados naquela noite”, por aí em diante.
As histórias contadas por Lina Magaia, em cada um dos textos, são arrepiantes, transmitidas através de um discurso notavelmente catártico. Se por ventura “pipocar” uma literatura moçambicana de horror, a obra de Lina pode, definitivamente, ser considerada como a mais representativa da primeira fase da periodização desse género literário vindouro.
Por Gerson Pagarache
Revisor, autor e empreendedor